LADISLAU BATALHA

A Especificidade do Imaginário Colonial nos Romances de Aventuras de Ladislau Batalha

Jacinto Rodrigues 
Professor Catedrático da FAUP

Ladislau Batalha, (Lisboa 1856 – Arruda dos Vinhos 1939) escreveu mais de uma vintena de livros sobre múltiplos assuntos (política, história, filosofia, filologia, etc.) e publicou variadíssimos artigos, especialmente na imprensa operária. A sua actividade literária e romanesca reduz-se, contudo, a três romances publicados e duas peças de teatro. Os romances que vamos analisar, Mistérios da Loucura (Dramas de Família) e Misérias de Lisboa (Romance de actualidade) são extensos. Depois de terem sido divulgados como folhetins, foram publicados, quase na mesma altura, entre 1891 e 1893, pela Ed. João Romano Torres. 
O primeiro romance tem 4 Tomos, em 2 livros volumosos e o segundo romance tem 9 Tomos, em 4 livros igualmente volumosos! As histórias da literatura portuguesa não referem esses romances-folhetins, considerados romances menores, literatura popular e de “cordel”. O estilo deixa realmente muito a desejar e a temática é de um moralismo antiquado. São poucas as bibliotecas que possuem as folhas amarelecidas destes romances-folhetins. Fazem parte de raríssimas curiosidades de coleccionadores e alfarrabistas. Contudo, estes romances de aventura são a continuidade da literatura de cordel do séc. XVII e XVIII que foi muito divulgada e começa agora a ser estudada por se mostrar uma fonte preciosa na investigação da mentalidade da época.[1] 
Os romances populares de aventura, que surgiram em força na 2ª metade do séc. XIX, tiveram uma grande expansão e constituíram uma importante fonte de mudança de costumes e atitudes. Por isso, essa literatura popular tem sido objecto de estudos universitários que permitem estabelecer relações entre literatura e colonialismo. A “Societé Internationale d’Études des Litteratures a l’Ère Coloniale” (SIELEC) tem publicado trabalhos que permitem revelar a multiplicidade de discursos ideológicos, políticos e culturais, subjacentes à literatura, nomeadamente com temática africana.[2] 
Esses estudos desenvolvem-se a partir de livros de viagens, romances de aventura, literatura colonial ou ainda sobre literatura africana. São já muitos os estudos feitos sobre os livros de exploradores em África, no séc. XIX. É possível ler nestes textos, a natureza das intenções políticas, o “tipo de olhar” com que viam a nova realidade dos homens e das paragens do continente negro. O estrangeirismo gerou testemunhos diferentes, por exemplo em Pedrozo Gamito, René Caillié, Livingstone, Stanley ou em Serpa Pinto. Do mesmo modo podemos explicitar o imaginário literário ocidental nos romances populares, dos países coloniais. Pode-se também entender melhor a evolução dos processos de dominação e exploração do colonialismo, bem assim como as práticas e os processos complexos da contestação ou integração das diversas culturas e ainda revelar a metamorfose das relações interculturais e transculturais. Conhecem-se hoje estudos fundamentais que estabelecem tipologias nas literaturas coloniais indiciadoras de racismo e de imperialismo, como acontece, por exemplo, nos romances de Jules Verne[3] e de Rider Haggard[4]. Nesses estudos desocultam-se formas de colonização, consciente ou inconsciente, do imaginário ocidental. Na esteira destas investigações, quisemos mostrar a especificidade do olhar de Ladislau Batalha, nos referidos romances de aventuras que escreveu. Ele tinha o intuito de “esclarecer” as camadas populares, tendo subjacente à temática social abordada, situações de grande importância na sociedade portuguesa: o tema africano, o colonialismo e o racismo. Assim, nesses romances-folhetins, Ladislau Batalha reflecte algumas das características da mentalidade dominante e, simultaneamente, as novas atitudes críticas. Intervém, sistemicamente, em eventuais mudanças de paradigma, deixando-se, aqui e ali, impregnar pelo seu próprio enraizamento histórico-social, num processo de interacção desses mesmos diferentes paradigmas. Biografia Em traços muito largos, vamos aqui apontar alguns dados sobre o percurso de vida de Ladislau Batalha, até ao momento da escrita dos referidos romances. Ainda adolescente, torna-se militante republicano federalista, ligando-se a Teófilo Braga, Carrilho Videira, Correia Barreto, Magalhães Lima etc. Com Teixeira Bastos, Agostinho Fortes e António Ferrão torna-se discípulo do positivismo de Compte, tal como era defendido por Teófilo Braga.[5] 
Era porém um positivismo mitigado e a maior parte das vezes de cariz socializante. Já em 1876, Ladislau Batalha, membro da Mocidade Republicana e Federalista, vai-se opor ao directório do Centro Republicano Democrático, apoiando Carrilho Videira que fora acusado de espião do governo. Ladislau, escreverá um texto sobre este assunto,[6] pois, como ele próprio refere, foi também acusado de “espião e desordeiro, instrumento do cidadão Carrilho”[7]
Deslocando-se para sectores mais libertários e em coligação com o movimento operário, Ladislau não deixará de frequentar a Biblioteca Nacional onde “devora” os romances de aventuras de Mayne Reid, Jules Vernes e literatura de viagens como o livro de Pedrozo Gamito e Livingstone. Também o evolucionismo darwinista será uma das suas leituras. Em 1876, com 20 anos de idade, publica uma carta atacando António Rodrigues Sampaio[8] e faz apelo à melhoria da instrução. Nesta nova publicação, cita autores como Haeckel, Hegel, Lubock, Darwin, explicitando as insuficiências da Biblioteca Nacional por não terem livros desses vultos da ciência. Entretanto a Sociedade de Geografia de Lisboa acabara de ser criada em Dezembro de 1875. E aí se fazia um apelo ao estudo e exploração científica das colónias. Ladislau Batalha, magoado pela sua experiência política inicial com o directório republicano, parte para S. Tomé e Príncipe em 1876. Vive o momento de viragem no processo da luta jurídica contra a escravatura em Portugal e nas colónias. Trata-se da imposição britânica para pôr fim aos escravos em S. Tomé. Como ele próprio relata,[9] vai-se tornar funcionário público na Curadoria Geral, fazendo respeitar a “Nova Regulamentação e Fiscalização do Trabalho dos Indígenas e Redacção dos Respectivos Contratos”.[10] 
Escreve de S. Tomé a Teófilo Braga, a 24 de Agosto de 1877, dizendo-lhe que está a preparar um livrinho sobre os costumes da Ilha[11]
Precisa de notas históricas sobre o assunto. Refere a tradição religiosa sobre o “gué-gué”, árvore secular. E nota ainda o interesse histórico pela questão dos judeus, enviados para a Ilha de S. Tomé por D. João II e D. Manuel I. Condoído com a miséria e a exploração dos serviçais, ou seja com a manutenção real da escravatura, mau grado as mudanças jurídicas, diante das anomalias existentes e face às dificuldades de fazer cumprir a lei aos roceiros, abandona a Ilha de S. Tomé. Segue para Luanda, mais ou menos escorraçado e perseguido, num pequeno barco. Porém, tal como o cônsul inglês em Luanda, David Hopkin, relatara em Junho de 1877 ao governador geral de Angola, a situação nesta colónia era péssima: a emigração de Angola para S. Tomé era “embarcada como rebanho” e na “pior das escravaturas”.[12] 
Já nesta cidade, em contacto com o Dr. Alfredo Trony, Ladislau Batalha participa na redacção do “Jornal de Loanda” onde tentará denunciar as novas situações que encontra em Angola. Também aí viverá um relacionamento difícil com o governador. Experimenta, em seguida, partir para o interior de Angola, como comerciante e investigador. Descreve várias provações nas “Memórias e Aventuras” acerca da sua vida no mato. No referido livro são várias as viagens, os encontros e peripécias vividas. Mas, ao longo dessa narração não conseguimos destrinçar a verdade, da imaginação: são reminiscências autobiográficas já muito tardias, pois foram escritas no final da sua vida. Algumas descrições não coincidem com relatos que fez, dessas mesmas viagens, na imprensa operária. Descreve, no referido livro de memórias, um atribulado casamento com a filha de um Soba e as aventuras na selva, com perigos terríveis, em que ficará para sempre grato a Tunda e Samba, os serviçais amigos, por lhe terem salvo a vida.[13] 
Aprende kimbundo e estuda os costumes de Angola e a sua história. Sobre estes assuntos publicará livros na Biblioteca de Educação Popular[14]
Acabará por abalar de Angola em condições confusas, atravessando o rio Cassai e dirigindo-se ao então recente “Estado Livre do Congo”. “Percorrida a região de Leopoldoville, já a jusante de Stanley-pool”[15] desce cataratas e cachoeiras. Dirige-se à povoação de Boma e é salvo do cansaço e da miséria, por uma feitoria holandesa. Partirá então num baleeiro, em 1881, em direcção à América do Norte. E, nesta prodigiosa aventura que daria um filme, Ladislau Batalha, depois de percorrer os Estados Unidos da América, viaja ainda à Gronelândia e em seguida parte para o Japão. Cerca de 1884, voltará a África e viverá em Cabo Verde trabalhando no Consulado Francês. Vive com uma mulher cabo-verdiana, de quem terá uma filha. De regresso a Portugal, por volta de 1890, sofrerá o desgosto de as ver morrer tuberculosas.[16] 
Na altura em que escreve os romances, lecciona línguas em escolas livres de Lisboa e apoia o movimento operário, travando uma profunda amizade com Azedo Gneco, tipógrafo e célebre dirigente socialista. Os Romances Nos romances que vamos agora analisar, pretendemos descriptar o sentido intrínseco do texto e do contexto e a morfogénese complexa do seu autor, através da sua experiência de vida, alicerçada em referentes políticos e literários da sua época. Mistérios da Loucura Nos Mistérios de Loucura,[17] romance de Ladislau Batalha, publicado em 1891, a acção decorre entre a década de 50 e 60 do séc. XIX. Julião Sampaio, durante o Cabralismo é acusado de falsear documentos. Injustiçado, é preso e julgado repentinamente. E por tenebrosas e pérfidas forças políticas ligadas a sectores miguelistas, acaba como degredado em Angola. Chegará a Luanda em 1851. Deixa em Portugal a mulher e uma filha de 10 anos. Com o abandono do pai, a família vive em total pobreza . O medo cria um vazio junto da família destroçada. Vizinhos e amigos receiam retaliações. Apenas um amigo fiel, o Savedra, consegue encontrar um orfanato de freiras para a miúda. Aí permanecerá até vir a casar com o negociante Santos Valbom, que se deixa encantar pela jovem Maria, recatada e muito prendada aluna do tal colégio de freiras. A mãe morre, doente e entristecida pela desgraça e a uma irmã de Julião Sampaio, que com elas vivia, dá-lhe a “loucura religiosa”. O fanatismo atira-a primeiro para a igreja e em seguida para a bruxaria. Ladislau Batalha mostra aqui duas medidas no que diz respeito à Igreja. Por um lado refere o colégio de freiras como um lugar aprazível e tolerante, no caso de Maria e por outro lado descreve uma paróquia, com um padre fanático, que leva a tia de Maria à mais sombria superstição. O casamento, em 1860, entre a jovem Maria e o Santos Valbom, desperta a inveja do Conde Porto Rico seu companheiro das estroinices de juventude que, por velhacaria, quer destruir esse casamento. Santos Valbom viaja a Angola, por interesses comerciais. Mas também o move o intuito filantrópico de ajudar a resgatar o sogro. Enquanto o Conde Porto Rico, ricaço e sem escrúpulos, vai tentar a “desgraça” do matrimónio, o romance deixa suspenso este episódio para nos transportar para Luanda, onde o comerciante Santos Valbom acaba de chegar. Nesse ano de 1861, a cidade tem poucos brancos. E uma parte dessa população é constituída pelos degredados. Aqui, Ladislau Batalha vai tecer várias considerações sociológicas, sem contudo revelar se tais considerações reflectem apenas o discurso que Santos Valbom faz quando contempla o “assombro da miséria” para os lados da Ingombota: “O progresso tem que descrever uma curva gigante que envolva e abrace a humanidade inteira, como é desejo e inspiração dos grandes filantropos. Longos séculos têm ainda que decorrer, primeiro que as generosas visões, do mais puro socialismo, se tornem numa realidade. A revolução, a gigante e imensa revolução que se prepara na Europa e na América, forjada com as lágrimas de uns, a fome e a miséria de outros, não atingirá imediatamente muitos lugares recônditos da Ásia e da África, onde certamente os déspotas, varridos e açoutados, irão perpetuar o seu odioso regime de despotismo”.[18] 
E Ladislau Batalha, depois desta tirada em que se revela uma visão gradualista e positivista da história, prossegue: “Valbom não tinha preocupação política. Havia nele, porém, a preocupação do bem que o fazia aceitar todas as grandes concepções, donde quer que imanassem. Não o vislumbrava o seu bem-estar, porque sabia que pertencia ao pequeno mundo de remediados da terra, enquanto que milhões de homens, sobre a face do globo, definhavam, estorcendo-se nas agonias de uma lenta miséria (...). O aspecto da Ingombota condoeu-o (...). Um imenso monte de cubatas acumuladas, sem asseio, sem luz, sem conforto, foi o que se lhe deparou (...). Não havia ali canalização nem arejamento adequado (...). Pelo meio brincavam nus os pretinhos, enquanto os pais estendidos nas esteiras, também meios descompostos, fumavam a sua liamba. (...)- Como viverá esta pobre gente? Perguntava ele a si mesmo. Serão felizes na sua miséria? – Não! Respondia-lhe a sua correcta consciência. Não, que os desgraçados dos grandes centros sentem a miséria que os tortura mas lutam e aspiram pela regeneração. Têm uma profunda esperança no futuro que, por meio da revolução, lhes dará os elementos para se emanciparem.”[19] 
Escravos e populações sobrevivem na miséria da Sanzala que constitui a periferia do pequeno núcleo urbano de Luanda. É nas Ingombotas que Santos Valbom, movido por razões de piedade, salva um jovem negro da ameaça de espancamento até à morte, que outros negros pretendem infligir ao jovem Tumba Cueb. Depois dos negócios, Santos Valbom regressa a Portugal trazendo o jovem Tumba Cueb como prenda exótica para a sua esposa, em troca da sua frustração por não ter encontrado pistas sobre o sogro. Entretanto, em Lisboa, o Conde Porto Rico com o apoio duma das suas amantes, a Ambrósia dos Tagatés, tentará, graças aos “filtros”, “poções” e narcóticos utilizados por uma feiticeira tresloucada (velha tia de Maria) penetrar na casa de Santos Valbom. Quando este chega de África, é acicatado pelo antigo colega das borgas e orgias juvenis, sobre uma pretensa infidelidade da esposa. As provações dos ciúmes vão-se insinuando à medida que o ex-amigo lhe mostra um talismã que Santos Valbom oferecera à esposa por alturas do casamento. Entretanto Maria desespera face ao desaparecimento das prendas maritais. Contudo, vai encontrando lenitivos para as suas angústias nas conversas com Tumba Cueb. É então que descobre uma rocambolesca história: Tumba Cueb tinha tido como patrão e educador, em Angola, seu pai, quando se encontrava preso em terras do Quissange, do “malvado” Soba Quinebuto. Nos 4 volumosos Tomos deste romance folhetinesco, desenvolve-se o melodrama dum previsível adultério e uma nova aventura africana que leva de novo Tumba Cueb e Santos Valbom a Angola. São ainda motivos comerciais e sobretudo a esperança na conquista de gratidão e amor de Maria, que justificam a viagem. Valbom pretende libertar o velho Julião do sanguinário Soba que detém o degredado à espera dum resgate prometido por Savedra, o velho e fiel amigo que se tornou capitão dum baleeiro, na esperança de obter dinheiro para o libertar. Maria oscila entre o desejo de reencontrar o pai através da viagem do marido e o temor de ficar só, diante das insinuações do Conde. Entretanto, em África, durante a excursão pelo mato na procura de Julião, Tumba Cueb revela-se um herói que salva Santos Valbom de morte certa, naquela selva perigosa. O herói negro, Tumba Cueb, salva também da morte o velho Julião, seu primeiro patrão e amigo, no momento em que ia ser liquidado pelo Soba Quinebuto. Tumba Cueb apunhala o “malvado” Soba que também fora responsável pela morte da sua amada mulher. Escusado será dizer que esta situação aventurosa é descrita com pormenores geográficos, tal como sucede nos romances de Jules Verne. Porém, no texto de Ladislau Batalha é a experiência pessoal dos lugares que é referida. Descreve locais onde passou e viveu: o Dondo, a barra do Kuanza, Massangano e o sertão do Quissama. Foram locais em que esteve, durante a sua estadia em Angola, como refere nas Memórias. Nesse sentido ressalta um realismo descritivo com exactidão e objectividade da paisagem africana. Note-se ainda que o romance tem bastantes expressões e termos em Kimbundo, mostrando assim os conhecimentos linguísticos e etnológicos do autor. Mas voltemos ao romance: Valbom e Tumba Cueb voltam para Lisboa. Novas situações políticas propiciam a desmontagem do processo “ignominioso e injusto” de que Julião fora vítima. É durante esta nova estadia em Lisboa que Tumba Cueb volta a ser personagem determinante no romance folhetinesco de Ladislau Batalha. Roído de ciúmes face a aparentes comprovações da infidelidade de sua mulher, Santos Valbom, num desvario digno dum drama de “faca e alguidar” da época, tenta apunhalá-la. Porém, Tumba, o fiel serviçal, intervém rapidamente e tira o punhal do patrão num arremedo que deixa em suspenso o leitor perante tal perplexidade. Estabelece-se então um hiato no romance. E o leitor fica sem saber o que realmente aconteceu! Apenas nos damos conta de que, decorrido algum tempo, Tumba Cueb leva o patrão para bordo dum navio que está prestes a partir para Angola. Com esta sua atitude pretende salvá-lo do crime que teria sido perpetrado. De facto, as forças policiais acorrem a casa de Santos Valbom. Descobrem uns lençóis e alguma roupa banhada pelo líquido vermelho vivo que está espalhado pelo quarto onde se teria desenrolado o dito crime passional. Mas o corpo da vítima não aparece! Entretanto, o patrão Santos Valbom vive o drama da sua consciência. Roído por sentimentos contraditórios, odeia agora Tumba Cueb por considerá-lo, afinal, o criminoso da morte da mulher, embora este apenas pudesse ter sido a mão executora da sua própria vontade se o crime tivesse sido realmente cometido. Tumba Cueb sofre em silêncio esta ingratidão. Este dramalhão folhetinesco que alterna o mais arrebatado dos romantismos e que, ao mesmo tempo, descreve cenas com um naturalismo exacerbado, vai permitir o “suspense” rocambolesco e todas as reviravoltas do enredo. Assim, quando chegam a Angola, Julião, o pai da “vítima” fica destroçado pelo alegado homicídio do genro. Mas, simultaneamente, nesta confusão de sentimentos, não pode esquecer a gratidão ao seu genro salvador. Ao mesmo tempo, o pai de Maria tortura-se pelo dito adultério da filha que levara ao desvario de Santos Valbom!... Sentimentos confusos e contraditórios irrompem permanentemente nesta intriga passional. Porém, este melodramático folhetim, nem sempre de cuidada escrita, acaba duma forma espectacular: Santos Valbom recebe uma carta do Conde Porto Rico. 
Essa carta exprime a ambiguidade malévola duma acusação e, simultaneamente, um remorso pessoal, dado que, para o Conde, Maria está morta. O Conde explica, só agora, que nada se passou entre ele e Maria pois, com o roubo do talismã, apenas queria infligir ciúme e destruição no casamento do ex-amigo, sem que pudesse prever o desfecho do homicídio. Adultério não houvera porque a recatada Maria dormia no seu quarto acompanhada pela amiga Laura e pela velha criada que fielmente aí recolhia, todas as noites, ao pé da cama, durante a ausência do marido. Afinal, o Conde de Porto Rico apenas pudera roubar um talismã. Neste lance melodramático, despedaçado pelo infortúnio dum crime hediondo e sem motivo, Santos Valbom, pretendendo expiar a monstruosa culpa, puxa duma pistola para assassinar o negro Tumba Cueb e em seguida suicidar-se. É então que, pasme-se, neste clímax do drama-folhetim, entra pela porta adentro Maria que, afinal está viva e impede mais um desvario do marido. O romancista revela então, numa retrospectiva tortuosa e lancinante, que Maria se recolhera numa embarcação, após o fictício “crime” encenado por Tumba Cueb. Com efeito, explica o romancista Ladislau Batalha, num lance inteligentíssimo e duma fina sensibilidade estratégica, Tumba fizera uma mistura de água e tinta vermelha proveniente da casca de um pau de Tacula, árvore proveniente de Angola. E com este falso “sangue” vegetal, maculara a roupa da senhora e o soalho da casa, enganando a polícia e o próprio patrão. Arrastando Maria para fora do quarto, afastara a gentil senhora da raiva criminosa do marido ciumento. Ao mesmo tempo, motivado pela compaixão pelo amo, apoiara moralmente o generoso patrão despedaçado pelas horríveis obsessões do homicídio passional, fingindo assim ter vingado o alegado adultério de Maria. A história de Maria e a sua viagem insere-se também noutro não menos rocambolesco transe do folhetim. É que Maria foge para uma embarcação. Vestida de homem e com o nome de Mário, torna-se marinheiro dum barco que, por curiosa coincidência, vai para Angola. Veja-se ainda, para cúmulo dessas espaventosas coincidências, o capitão é o velho e fiel amigo de seu pai – Savedra – aquele que a ajudou a recolher-se no colégio de freiras e que conseguiu os meios económicos para resgatar o seu velho amigo Julião. O dramalhão tem assim um desfecho feliz. E termina com Maria de braço dado com o marido, passeando-se nas ruas de Luanda, acompanhada por Tumba Cueb, ouvindo-se as pessoas a perguntar: - “Quem é o preto tão bem vestido que vai com eles? - Dantes chamavam-lhe o negro Tumba Cueb que carregava sacos. Hoje é querido e estimado como filho. Parece patrão dos patrões” [20] Misérias de Lisboa 
O outro romance de Ladislau Batalha, Misérias de Lisboa[21], editado entre 1892 e 1893, é longuíssimo. De folhetinesca feitura, é também construído pelas constantes reviravoltas encenando lugares exóticos e fazendo surgir criaturas bizarras. Foi escrito à medida que os folhetins iam sendo publicados e faz apelo a um constante e habitual “suspense”. Caracteriza-se por um sucessivo processo de melodramas decalcados nos preconceitos da época, onde não faltam terrores, tentativas de violação e crimes incestuosos e selvas povoadas de gorilas medonhos, feitiços e outros mistérios de África. A intriga desenrola-se com personagens decorrentes daquele tempo: mães solteiras; crianças postas na “roda”; mulheres “desonradas” por falsos namorados; escória social dos bairros de miséria onde pululam maltrapilhos e ladrões que servem de paus mandados de ricaços sem escrúpulos que vivem do jogo e prostituição; Aqui se contam as torpezas e falsidades de Benevides, ex-oficial da polícia, dono de prostíbulos e casas onde se joga “à batota”. Narram-se ainda aventuras dos vadios “Ensarilhado” e “Tiroliro”, que pertencem à escumalha que sobrevive da gatunice e do crime organizado. Ladislau revela-nos a imoralidade desses grupos que se exprimem numa gíria especial e que ele próprio transcreve e traduz no romance. A Lisboa de “bas-fond” lembra Londres descrita por Dickens ou Paris de Eugène Sue, com os quadros mais ou menos típicos dos alvores da sociedade industrial e da miséria social daquele tempo. Ladislau Batalha articula as várias personagens em enredos quiméricos e romanescos que apenas têm como base os efeitos que julga obter no melodrama, entre preocupações sociais e a exploração de sentimentos passionais. O drama de Teresa Nobre, mãe solteira abandonada por Serrano, vai desenrolar-se em tragédias sucessivas. Ela enjeita a filha. Serrano vai para África em busca do saque e da exploração fácil. Genoveva, a filha enjeitada ao longo da infância e adolescência, sofre as agruras de uma vida miserável. No outro lado da cidade vive, na maior opulência, Benevides, o corrupto e proxeneta. E no centro da cidade, na rua oriental do passeio público, mora a família Ibrahim Azancot que se afunda economicamente com a falência da pequena empresa. Mantém porém o orgulho elitista de pequeno comerciante judeu que não quer aceitar o casamento de sua filha Estér com o virtuoso marçano, Leocáudio Bacelar. Com efeito, contrariando os enlevos passionais da filha e do jovem empregado, Azancot parte para África com a mulher e a filha, em busca de fortuna, levando como criada a jovem Genoveva. Procura assim fugir da catástrofe económica da empresa e preservar o orgulho da sua linhagem de judeus nobilitados, os Azancotes, por terem ensinado náutica à corte portuguesa do séc. XVI. Note-se que esta referência à mania de superioridade de Ibrahim Azancot não expressa nenhuma posição de anti-semitismo. O próprio Ladislau Batalha, numa publicação anterior ao romance, editada pela Biblioteca Popular – Costumes Angolenses – identifica-se, através das cartas que vai escrevendo, com um judeu de nome Ben Zacheu. Trata-se pois duma crítica social ao orgulho ou pretensiosismo social de quem se julga superior por pertencer a uma linhagem de família “nobilitada pelo rei”. Essa viagem passa-se no ano de 1876, a bordo do vapor “La Plata”. Ibrahim Azancot vai aí conhecer o negro Sugar Loaf. Deste encontro vai-se desenrolar todo o imaginário colonial do escritor, que ocupará especialmente o Tomo V e VI do longo romance folhetinesco. Na caracterização do personagem, exprime-se já toda uma concepção sobre a alteridade, onde se misturam referências culturais, ambiguidades e resquícios de um paternalismo colonialista, mas de forma envergonhada: “Um preto de kru, (...) dava pelo nome de Sugar Loaf, designação toda inglesa que literalmente vertida significa pão de açúcar.”[22] 
Mostra-se aqui a maneira como se veio a formular o carácter identitário deste personagem. É uma cultura estrangeira que lhe dá o nome de Pão de Açucar – Sugar Loaf- construindo-lhe uma identidade corriqueira e submetida. Exactamente como o nome de “Sexta-Feira”, no romance de Robinson Crusoé, de Defoe, em que se explicita a banalidade do encontro entre o senhor e o escravo: “Sexta-Feira”- nome do homem negro que resulta apenas duma coincidência dum encontro ocorrido naquele dia, no calendário do colono. A seguir, veja-se como Ladislau Batalha o caracteriza: “Um rapaz alto, grosso e possante, mas de maneiras realmente adocicadas, contrário ao da sua raça que não primam em finura nem delicadeza” [23] 
Uma vez mais não se consegue saber se, com esta expressão humilhante, Ladislau Batalha retrata o olhar do colono Ibrahim Azancot ou se o comentário revela o olhar do próprio escritor. Essas são as frequentes ambiguidades que revelam um paradigma emergente, frágil e pioneiro do escritor, ainda com um contexto numa realidade histórico-social da escravatura. O romance não deixa contudo de realçar qualidades superiores no negro Sugar Loaf pois este “além da sua própria língua falava inglês e também português”.[24] Sugar Loaf vai revelar-se a Ibrahim como um “cidadão da Libéria”, de vastos conhecimentos geográficos e larga experiência humana. “Krumano”, natural de Bamnepo, como escreve Ladislau Batalha, Sugar Loaf também tem contradições com o explorador da sua etnia, o terrível “Quá-Quá” que o obrigara a pagar “cinco cabeças de gado e um cento de manilhas de ouro”. Aqui se mostram as ilusões de muitos dos reformistas da época, que valorizavam a importância da Libéria, como exemplo para África. De facto, alguns filantropistas pensavam que a criação de um Estado Africano em 1847, sob a égide de uma constituição inspirada pelos Estados Unidos da América, iria por si só instaurar, à maneira ocidental, um “estado livre e justo”. Não era ainda imediatamente visível a natureza deste projecto, minado na sua génese. A Libéria era apenas um ensaio de nova colonização africana, após a escravatura. É que “o tráfico começou a decair quando começou a ser mais lucrativo manter os negros em África..”[25] 
A Libéria foi porém, uma criação artificial, gerada pela American Colonisation Society, com uma base simultaneamente filantrópica e interesseira. Não conseguiu esconder objectivos, implícitos à sociedade colonial, de prosseguir a exploração localizada em África, aproveitando ao mesmo tempo afastar alguma população negra, recém liberta da escravatura, e que estava desempregada na América do Norte e na Inglaterra. Mas, voltemos ao romance: Há, neste romance de Ladislau Batalha, um sentimento de respeito e admiração, professado por Ibrahim nos valores enunciados por Sugar Loaf: - “Pois aqui, master, não é como lá nas suas terras onde tudo custa dinheiro e até se paga para ter água e luz (...). Não nos falta palmeiral, a terra dá-nos roupa, madeira para construção, palha para os nossos telhados, cipó e corda para amarra, peixe nos rios, caça nos bosques, vinho, leite (...) tudo, master, tudo aqui a terra nos dá. E nós, que não professamos a lei de Cristo nem de Mafona, que não adoramos bonecos em igrejas, que não rezamos, que não lemos por códigos, servimo-nos de tudo que a natureza nos oferece e permitimos generosamente ao nosso semelhante que se utilize do que não nos faz falta. Aqui não se conhece o egoísmo, nem há assassinos nem suicidas. Quando pomos a caldeira ao lume, já sabemos que o primeiro que se aproximar, comerá dela.”[26] 
Ladislau quer mostrar assim as virtudes do “bom selvagem”, resquícios do paradigma iluminista à Jean Jacques Rousseau, que ele ainda conserva. Porém, noutros momentos, afloram também outras ideias. Assim, noutras páginas, citam-se frases de Darwin, exemplificam-se dados sobre a antropogenia de Haeckel e desfiam-se ainda nomes dos célebres naturalistas Paul Broca, Andebert, Bischoff, Buchner, Carl Vogt, Geoffroy St. Hilaire, etc. Ladislau Batalha não tem limites para a sua erudição, alardeada neste romance de aventuras, que se pretende também uma obra didáctica. Noutras partes deste livro há referências exóticas a batuques e feitiçarias. Algumas dessas descrições são fantasiadas. Mas, grande parte delas mostram as observações que Ladislau fez, quando percorreu Angola e as descreveu nos apontamentos que editou em 1890, na Biblioteca do Povo.[27] 
Assim, verifica-se uma transição clara entre um paradigma iluminista em que o “bom selvagem idílico”, dá lugar a um quadro mais realista do “herói negro” baseado na vivência e conhecimentos de África expostos nos ensaios que Ladislau Batalha escreveu.               No meio das peripécias rocambolescas dos romances de Ladislau Batalha, com cenas dignas de um Ponson du Terrail e Jules Verne, o autor debita ensinamentos botânicos e geográficos com um conhecimento experimentado, como viajante que foi. E quando descreve a nova implantação da família Ibrahim, é como se este fosse um “novo Crusoé” civilizador! Porém, este “Robinson” português, Ibrahim Azancot, aprende aqui a aceitar as lições provenientes da superioridade moral de Sugar Loaf. Não ensina apenas. Aprende também. Por vezes, Ladislau Batalha expressa simultaneamente uma concepção de progresso linear em que o modelo ocidental é a referência normativa de excelência, ou seja, o ponto mais alto das civilizações mas também revela uma crítica a esse modelo de civilização dominante, face a outros valores mais fraternos como o desapego ao egoísmo material manifestado pela cultura dos africanos. Contudo as ambiguidades prosseguem e, mesmo quando perpassa um aparente anti-semitismo sobre o gosto pelo ouro de Ibrahim, o processo romanesco acabará por revelar a positividade do “judeu”. O romance vai revelar Sugar Loaf como um personagem-herói. Ele vai morrer esfaqueado pelo branco Yevoghan (nem mais nem menos do que Serrano - o português ladrão e criminoso) que tenta violar Genoveva. Esta morte heróica, que impede o crime, mostra a superioridade moral de Sugar Loaf. As peripécias da intriga melodramática e trágica terminam com o retorno da família Ibrahim Azancot que aprendeu com o humanismo de Sugar Loaf. E, o casamento de Estér com Leocáudio Bacelar, que entretanto enriquece na América Latina, mostram como Ibrahim Azancot abandona o seu orgulho inicial elitista para aceitar alegremente o casamento da sua filha com o antigo marçano pobre da sua empresa. O reencontro de Genoveva com sua mãe acentua o desfecho feliz deste folhetim. Conclusão As intrigas destes folhetins, escritos por Ladislau Batalha, que foram paradigma de historietas de fantásticas aventuras e apaixonados enredos, são hoje histórias sem interesse. São outros os tempos e os sentimentos das pessoas. Mas, na época em que foram escritos, constituíram o enleio de milhares de leitores. As gravuras do artista espanhol exilado em Portugal, Pastor, ajudavam o público a imaginar os personagens e os lugares exóticos, tal como os écrans dos nossos televisores de hoje. Esses folhetins vendiam-se em todos os quiosques e muitos ardinas calcorreavam a cidade apregoando-os. As traduções dos romances “Juif Errant”, “Mystères de Paris”, “Les Cinq Semaines en Ballon” e as “Aventures de Rocambole”, assim como os folhetins de Ladislau Batalha aqui analisados, eram como as telenovelas dos nossos dias, o alimento do imaginário de quem as lia. Ladislau Batalha refere, expressamente, nos romances que escreveu, a opção de se orientar numa perspectiva de literatura popular cujas referências cimeiras eram Eugène Sue, Ponson du Terrail, Gonzalez e Jules Verne, como dissemos. Considerava Víctor Hugo e mesmo Balzac como demasiado eruditos. Para além destes referentes estético-literários, é a sua própria episteme, construída de vivência, imaginário e ideologia, que se vai metamorfoseando. A concepção do mundo, prisioneira de preconceitos sociais dominantes, amarrada por conceitos do positivismo da época estava inserida numa mudança sociológica em que Ladislau Batalha se posiciona como socialista e defensor das autonomias coloniais. É nessa tecitura de vectores que interagem, que se produziram os textos aqui analisados. Esses textos resultam assim, de um processo entre várias pontes identitárias que se afrontam, se misturam, se metamorfoseiam em ambiguidades e afirmações deliberadas . Assim se constrói e se destrói o olhar do outro e o nosso olhar sobre os outros, na busca infinita duma melhor compreensão e solidariedade. Identidades culturais, interculturalidades e transculturalidades relacionam-se dum modo dialógico num processo infindável entre o local e o global, o singular e o universal. As intrigas estabelecem-se entre polaridades sociais mas nunca racistas. A estrutura dialéctica nos dois romances desenvolve-se sempre entre “negros bons” (Tumba Cueb e Sugar Loaf) e “negros maus” (Quá-Quá e o Soba Quinbuto), “brancos bons” (Leocáudio Bacelar e Julião Sampaio) e “brancos maus” (Conde de Porto Rico e Serrano – o Yevogan). Assim, o modelo romanesco de Ladislau Batalha aborda mais a problemática sociológica da luta de classes, embora quase sempre numa perspectiva reformista, do que a explicação racial dos factos relatados. Porém, neste revisitar da literatura da época colonial vemos como Ladislau Batalha, situado no seu tempo e com as limitações existentes no processo, se tornou também actor. É por isso que, alguns anos mais tarde, no Congresso Internacional Socialista de Amesterdão em que Ladislau Batalha foi o redactor do texto votado sobre a independência das colónias, tal como refere José de Macedo,[28] fica clara uma posição anti-colonialista. Ladislau Batalha fará igualmente votar a autonomia colonial, no Congresso Operário que se reuniu em Lisboa, em 1909: “O congresso, cônscio de que a exploração capitalista está cada vez mais onerada com o domínio colonial, pelo que lhe aumenta a exploração, sem regra e sem freio, esbanjando capitais e riquezas naturais, sujeitando a população das colónias à mais rude e, por vezes, à mais sanguinária opressão sem trazer para o proletariado senão o agravo da sua miséria, lembra a decisão do congresso de Paris, de 1900, relativa à questão colonial e à política imperialista e consigna como um dever dos partidos socialistas nacionais e das fracções parlamentares: 1º - de se oporem intransigentemente a todas as medidas imperialistas ou proteccionistas às explorações coloniais e às despesas com as colónias; 2º - de combaterem os monopólios e as concessões de vastos territórios; e de vigiar escrupulosamente para que as riquezas do mundo colonial não sejam açambarcadas pelo alto capitalismo; 3º - de tornarem conhecidos os actos de opressão de que as populações indígenas foram vítimas; de obterem para elas todas as medidas eficazes de protecção contra a exploração capitalista; e de se cuidarem especialmente de que elas não sejam despojadas dos seus bens, nem pela força nem pela fraude; 4º - de proporem ou de advogarem, tudo quanto possa melhorar a condição dos indígenas, os trabalhos de utilidade pública, as medidas de higiene, a criação das escolas, etc. que lhes digam respeito, diligenciando ao mesmo tempo arrancá-los à nociva influência dos missionários; 5º - de reclamarem para os indígenas a mais larga soma de liberdades e de autonomia, compatíveis com o seu grau de civilização, tendo sempre em vista a completa emancipação das colónias; 6º - de colocarem a exploração colonial sob a fiscalização parlamentar.”[29] 


[1] José Ramos Tinhorão, “Os negros em Portugal”, Ed. Caminho, Lisboa, 2002 
[2] Ver « Les Cahiers du SIELEC », Ed. Cailash, 2003 
[3] Jean Chesneux, “Jules Verne-une lecture politique”, Ed. F. Maspero, Paris, 1982 
[4] Wendi Katz, “Rider Haggard and the fiction of empire”, Cambridge Univ.Press, 1987 
[5] “Teófilo Braga perante as gerações escolares de 1872 a 1922”, Teixeira Bastos e outros, Ed. Instituto Teofilano de Lisboa, 1923 
[6] Ladislau Batalha, “A Nova Inquisição ou o directório republicano”, Ed. Nova Livraria Internacional, Lisboa, 1876 
[7] Idem, pág. 4 
[8] Ladislau Batalha, “A instrução oficial: carta a António Rodrigues Sampaio”, Lisboa 
[9] Ladislau Batalha, “Memórias e Aventuras”, Ed. José Rodrigues & Cª, Lisboa, 1928 
[10] Idem, pág. 35 
[11] Carta de Ladislau Batalha, Biblioteca Municipal Ponta Delgada, Espólio Teófilo Braga. 
[12] Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, 2ª secção- Angola-,Caixa 1-Curadoria 
[13] Ladislau Batalha, “Memórias e Aventuras”, Ed. José Rodrigues & Cª, Lisboa, 1928, pág. 151 [14] Ver pequenos livros publicado na Biblioteca do Povo e das Escolas, nºs 164,175,177,193 e 198, Lisboa. 
[15] Ladislau Batalha, “Memórias e Aventuras”, Ed. José Rodrigues & Cª, Lisboa, 1928, pág. 153 [16] Informações recolhidas junto da neta de Ladislau Batalha, D. Lídia Batalha 
[17] Mistérios da Loucura (Dramas de Família), 4 Tomos, 1891,Lisboa, Ed. João Romano Torres 
[18] Idem, Tomo I, pág.227-229 
[19] Idem, Tomo I, pág.227-229 
[20] Idem, Tomo IV, pág. 284 
[21] “Misérias de Lisboa (romance de Actualidade)”, 9 Tomos, 1892-1893, Lisboa, Ed. João Romano Torres 
[22] Idem, Tomo V, pág. 186 
[23] Idem, Tomo V, pág. 187 
[24] Idem, Tomo V, pág. 187 
[25] Marc Ferro, “História das Colonizações”, Ed. Estampa, Lisboa 
[26] “Misérias de Lisboa (romance de Actualidade)”,1892-1893, Lisboa, Ed. João Romano Torres, Tomo V, pág.237 
[27]Ladislau Batalha, “Costumes Angolenses”-Biblioteca do Povo e das Escolas, Companhia Nacional Editora, Lisboa, 1890 
[28] José de Macedo, “Autonomia de Angola”, C.S.E.I.I.T.,2ª Ed., s/d 
[29] in “A Republica Social”, nº22, de 14.03.1909

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Anos de Aprendizagem de Ladislau Batalha


Jacinto Rodrigues 
Professor Catedrático da FAUP


Introdução
A vida de um homem define-se, essencialmente, pelos anos de formação. Até cerca dos três primeiros septénios forma-se o carácter e definem-se os interesses principais de uma vida pessoal. Ladislau Batalha bem cedo teve consciência disso. A sua biografia, ancorada pelos contextos vários que o situam histórica e territorialmente, tem contudo uma directriz auto-formativa em relação ao seu destino. Os seus relatos autobiográficos e em especial as suas memórias, mostram a consciência da sua própria história de vida como história iniciática. A auto-aprendizagem, que vai realizando através do pensamento e da acção, exprime uma vontade contra-corrente da mentalidade dominante na sua época. Há uma consciência crítica que ilumina o seu projecto de vida. Assim conta-nos, nas suas memórias e aventuras[1]- reminiscências autobiográficas – que escreveu uma carta ao pai, aos 20 anos, antes de embarcar para a sua grande viagem aventurosa à volta do mundo, que duraria 11 anos. Nessa carta fazia o balanço dos seus vinte anos: “aos doze traquina, aos catorze selvático com tendências a aventureiro, aos dezasseis... aspirante a literato, aos dezoito político... e aos vinte a idade em que a criança sai homem. É a formatura da virilidade”.[2]

Descreveremos aqui os primeiros vinte e um anos, que constituem os anos de aprendizagem de Ladislau Batalha.
No nº 25, do livro dos baptismos da freguesia da Encarnação da cidade de Lisboa, consta que Ladislau Estevão da Silva Batalha nasce em Lisboa a 2 de Agosto de 1856 e aí foi baptizado a 10 do mesmo mês e ano, na Igreja Paroquial de N. Sª. da Encarnação.
Nesse assento baptismal está referido que Ladislau Batalha é filho legítimo de João Cesário da Silva Batalha e de D. Emília Adelaide Batalha. Os pais casaram-se na freguesia de S. Nicolau e moravam na rua da Atalaia. Um neto de Ladislau Batalha, que conheci e que já faleceu, o Sr. Gil Batalha, facultou-me uma fotografia em que se vê o pequeno Ladislau Batalha, com 5 anos, e a sua mãe vestida com roupagens de senhora endinheirada. Tem a pose de uma matrona burguesa, a digna esposa dum comerciante bem instalado na praça de Lisboa.
Junto ao Chiado a criança foi crescendo, numa infância descuidada. Miúdo vivaço, bem depressa manifestou a irrequietude de quem se aventura pela cidade, buscando companhias diferentes por entre os bairros pobres de Alfama, o Passeio Público e a Praça do Comércio.
No Liceu manifestava-se também a sua adolescência atribulada. Faltava às aulas e o Liceu foi feito a custo. Escapava-se das sorumbáticas lições e refugiava-se na Biblioteca Nacional onde lia Júlio Verne, Maine Raide e outras aventuras de viagens. Lia Darwin, Livingstone e Burton. A inclinação para as línguas levava-o a espraiar-se por leituras de Hamilton, Goehte e Alexandre Dumas.
Dava explicações de inglês, francês e mesmo alemão a outros colegas, procurando assim autonomizar-se da mesada dos pais, que olhavam com desespero para a vida atribulada do filho. Com os chumbos e as faltas sucessivas, o pai pô-lo a trabalhar na empresa Winghan & Lamp; Laver, na esquina da rua do Alecrim e da rua Ferregial de Baixo. Aí melhorou ainda mais o seu inglês e foi-se estreando na escrita.
Escreveu uma peça de teatro que, embora marcada pelo espírito de adolescente romântico, manifesta já uma crítica mordaz dos costumes do seu tempo. Publicou-a mesmo, em 1873. É um pequeno opúsculo “Consequências de um sim”. [3]
É uma farsa, representada provavelmente no Liceu, em que se ridicularizam patrões endinheirados que tentam seduzir, em vão, uma jovem e inteligente empregada que os ridiculariza. Publica em 1876 um outro opúsculo “Carta a António Rodrigues Sampaio”[4].
Neste opúsculo manifesta já larga erudição. Escreve sobre Compte e cita nomes como Hegel, Vega, Lubbock, Haeckel, Darwin e Renan. Em história escreve sobre César Cantu e Guizot. Depois de tiradas críticas ao oportunismo de António Rodrigues Sampaio, revela as deficiências da Biblioteca Nacional escrevendo “...não existe uma secção de paleographia (porque não há livros desta matéria na biblioteca) nem tão pouco um catálogo da ciência numismática” e acrescenta “... a transição dos povos deve também fazer-se neste nosso torrão”. Mostrando-se discípulo de Teófilo Braga vai escrevendo “... cada movimento moral, físico ou político tem as suas três épocas ou fases”.[5]
Nessa altura começa a dar explicações de línguas de uma forma mais consequente. Considera-se mesmo professor. Frequenta a Nova Livraria Internacional que ficava na Rua do Arsenal, nº 96. Reuniam-se aí emigrantes espanhóis, franceses foragidos da Comuna de Paris e gradas figuras do republicanismo português como Teófilo Braga, Magalhães Lima, Eduardo Maia, Padre Bonança, Silva Lisboa, etc. A Livraria pertencia a Carrilho Videira que, por essa altura, era um dos mais combativos militantes do republicanismo anti-clerical. Carrilho Videira ficará para sempre como um dos principais mentores da visão anti-clerical de Ladislau Batalha. Carrilho Videira escrevera um folheto contra a organização secreta dos jesuítas, “A Monita Secreta”. Por outro lado, Teófilo Braga marcara o essencial da sua formação antropológica. Ladislau Batalha foi seu aluno no curso de Literatura da Faculdade de Letras de Lisboa. Ouvia-o embevecido falar das suas investigações literárias, filosóficas e sociológicas. A 25 de Março de 1875, houve um banquete no Palácio do Largo da Quintela. O Monteiro dos Milhões, burguês republicano, oferecera a casa para uma jantarada que festejava a vitória dos republicanos franceses.
Dois dias depois, a 27 de Março, nascia o directório republicano na Rua da Rosa, nº105. Este momento era o culminar do movimento eclético e reformista que vinha já de alguns anos. Com efeito, desde 1867, Oliveira Marreca reunira no Pátio do Salema, republicanos reformistas que se aliavam aos apaniguados populistas do aristocrata Conde de Peniche. D. Caetano, Conde de Peniche e futuro Marquês de Angeja, conspirava um golpe que veio a traduzir-se na chamada Janeirinha.
Os tumultos trazem para a rua milhares de populares descontentes. Após alguma instabilidade, o ano seguinte caracteriza-se pelo surgimento dum ministro conservador presidido pelo Conde d’Ávila. Mas o país parece ingovernável e em 1870 Saldanha toma o poder através de um golpe, arrastando atrás de si novos prenúncios de uma revolta popular. Com efeito, apoia-o uma populaça enquadrada pelo mesmo revolucionário romântico Conde de Peniche, misto de caudilho e reformador S. Simonista que conspirava em sociedades secretas iberistas. Em Maio de 1871 realizam-se as conferências democráticas ou do Casino que o Conde d’Ávila, outra vez de volta ao poder, proibirá com arrogância e mão dura. Pouco tempo depois, os internacionalistas espanhóis, Mora, Morago e Lorenzo conspiram num cacilheiro, navegando sobre o Tejo, acerca da revolução internacionalista, levando a bordo Antero, Fontana e Batalha Reis. Deste famoso encontro conspirativo nascerá a fraternidade operária cuja orientação intelectual será dominantemente marcada por duas tendências: o Proudhonianismo e o Baconinismo. Estas actividades lançam o pânico no ministério conservador do Conde d’Ávila.
Bem relacionado com o Conde Armand, embaixador de França em Lisboa, o Ministro português consegue obter um agente da polícia secreta francesa para montar um dispositivo de espiões na detecção de revoluconários portugueses. Assim, em Março de 1873 chega a Lisboa o polícia “Latour” que inicia as investigações sobre a actividade da Associação Internacional dos Trabalhadores em Portugal. O polícia fez algumas listas dos activistas da Associação, treinou agentes da polícia portuguesa que se infiltraram em várias associações e que se organizaram na fiscalização das fronteiras. Nota-se, nas cartas enviadas pelo polícia “Latour”, que ele está mais interessado na localização de eventuais “comunards” fugidos de França. Para ele os revolucionários de Lisboa não passam de pequenos grupos de intelectuais!... No entanto elabora uma lista onde sobressaem os nomes de Eduardo Maia, estudante de medicina, Nobre França, tipógrafo, Azedo Gneco, gravador e Carrilho Videira, livreiro[6].
Numa carta de Março de 1873, o polícia “Latour” é peremptório: “Em suma, nada temos a recear da intervenção da Internacional (...). O que poderia ser preocupante são algumas manobras sustentadas por argumentos sonantes a favor da União Ibérica.”[7]
O polícia francês temia a contaminação em Portugal da revolução republicana que estalara em Espanha e onde se defendiam os princípios da república federal tendo à frente o conhecido presidente Pi y Margal. A polícia portuguesa, alarmada pelos acontecimentos, tentara prender o Conde de Peniche que zarpara clandestinamente para lugar incerto. Contudo, alguns penicheiros e eminentes maçónicos viriam a ser presos e julgados. Assim, em 22 de Maio de 1873, em Lisboa não se falava doutra coisa senão no julgamento dos penicheiros, acólitos do conde de Peniche, conhecido também como o Marquês de Angeja. O chefe de esquadra da polícia civil, o senhor Manuel José Duarte disse, no tribunal, que se conspirava na casa do Marquês onde se “mirava a União Ibérica”. Também o senhor Augusto Júlio Bernardino da Silva, igualmente polícia civil, disse que vigiara a casa do Marquês de Angeja, ou seja, o conhecido Conde de Peniche, e aí se efectuavam reuniões para levar a cabo uma conspiração. O espanhol residente em Portugal, D. Luís Valasco, confessara mesmo que fora convidado para entrar na revolta dos penicheiros. A “conspirata” tinha como finalidade criar a União Ibérica e destronar os reis de Portugal e Espanha. Disse ainda D. Valasco que viria dinheiro de Espanha para a tal intentona.[8]
O Diário Ilustrado explicava que o Marquês, conhecido por Conde de Peniche, pusera-se na alheta e andava a monte porventura no estrangeiro. O conhecido mação, Visconde de Ouguella, fora a julgamento acusado de apoiar a dita revolta abortada em 19 de Maio. Ouguella respondeu declarando que não conspirou e que nunca tinha conspirado. Fora algumas vezes a casa do Marquês para tratar da fundação de um banco. O julgamento alargou-se a muitos outros suspeitos. O coronel Borges e outros militares de menor patente, eram também apontados como revolucionários, pelo coronel Damásio Gorjão. Este afirmara que tinha havido distribuição de panfletos revolucionários no quartel, através do Sargento Alão. Abortada a revolta populista do Conde de Peniche, o movimento entrara numa fase em que se procurava uma maior autonomização dos grupos operários. Contudo, três anos depois o ecletismo prosseguia e as conspirações, embora menos viradas para a conquista do poder, eram sobretudo orientadas para a organização de actividades sócio-culturais. Ora, é nesta etapa que o jovem Ladislau Batalha frequenta a Nova Livraria Internacional de Carrilho Videira, como já referimos. Na actividade cultural sobressaía Gomes Leal. Ladislau Batalha recorda uma sessão realizada no primeiro andar da Calçada das Caldas, subindo a Praça da Figueira. Era no “Ateneu”. O poeta Gomes Leal, cuja imensa popularidade fizera encher as salas com populaça excitada pelo entusiasmo, chegava agora bem posto com uma grande camélia vermelha na lapela. Uma longa sobrecasaca completava o perfil janota do poeta libertário. “...subindo ao estrado relançou o seu olhar de lince pela assistência que o recebeu e aclamou com uma trovoada de palmas.”[9]
Entre vários poemas recitava o seu poema já tão propalado “A Canalha”: “Ela vem triste, só, silenciosa Tinta de sangue, pálida, orgulhosa Em farrapos na fria escuridão Buscando o grande dia da batalha É ela, é ela, a lívida canalha...” As ovações eram estrondosas e ouviam-se ao redor da casa. Mas ali à volta também se apinhavam grupos de polícia dispostos a dar cacetada. A nova organização policial começara a dar frutos e não era só através da repressão directa que se fazia sentir. O francês “Latour” formara a teia de espiões e delatores que, penetrando nas várias organizações instilavam calúnias e confusão. É neste clima de suspeição que Carrilho Videira virá a ser acusado de espião do governo. Ladislau Batalha não permitirá a conspurcação do seu amigo e mestre e por isso lançará um libelo vigoroso e denudado sobre a nova inquisição, “O Directório Republicano”[10]
“Protesto energicamente perante o público, contra todas as infames arbitrariedades praticadas nestes últimos dias pelo Directório do Centro Republicano Democrático de Lisboa. Confesso-me indignado contra todos esses homens rancorosos, que desejando obrar como ditadores, não hesitam em lançar calúnias e até em forjar documentos falsos para anular aqueles que, por sinceros e dedicados, nunca quiseram acompanhar movimentos cabilosos nem atraiçoar os seus fiéis correlegionários. (...) Pesam sobre mim e sobre o cidadão Carrilho Videira acusações horríveis: o Directório do Centro Republicano Democrático, reunido no dia 29 de Julho, em minoria, arvorou-se ditador e sem prévia consulta da Assembleia Geral, resolveu que fossemos expulsos deste centro. (...) A mais enérgica acusação que fazem ao senhor Carrilho é a de espião do governo e essa mesma acusação pesa também sobre mim porque sou solidário com a justiça e partidário da intransigência.”[11]
Este libelo acusatório visa sobretudo o Coronel Gilberto Rola, o Padre João Bonança, Eduardo Maia, Consiglieri Pedroso, Bernardino Pinheiro e Elias Garcia. Esta experiência dramática será um autêntico tremor de terra na concepção republicana de Ladislau Batalha. E mesmo os contactos com Azedo Gneco, dirigente socialista e o estratega do jornal “O Protesto”, não o demovem do seu projecto de embarcar para África. Prefere a aventura, a investigação e a viagem à sordidez esclerótica dos bastidores politiqueiros. Recordará ainda os poemas de Gomes Leal. Vê-lo-á recitar versos do anti-Cristo. Não mais esquecerá a imagem de Gomes Leal, de sobrecasaca comprida, lenço ao pescoço e uma camélia vermelha na lapela. Com desenvoltura e elegância recitará, em saraus e comícios, versos que Ladislau Batalha jamais esquecerá. Por isso, longos anos mais tarde, num sobressalto comovente vai apoiar aquele velho e acabado Gomes Leal, dormindo nos bancos dos jardins públicos, acossado pelas crianças que o ultrajam à pedrada vendo-o ébrio, cambaleante e solitário... Isto passar-se-á quando Ladislau Batalha, em Agosto de 1919, o encontra abandonado por todos. O poeta considerado traidor... pois aquele que inflamara a populaça com os seus versos revolucionários, com as suas atoardas anti-clericais era agora um desgraçado, um indigente, um humilhado e convertido a uma vaga e heterodoxa crença entre o espiritismo e o catolicismo. Disso e muito mais escreverá Ladislau Batalha no livro que lhe dedicará, depois de ter recolhido o poeta na sua própria casa nos 3 últimos derradeiros anos da sua existência conturbada, doente e miserável. Como dissemos, em 1876, Ladislau com 20 anos, amargurado com o comportamento de alguns dos dirigentes republicanos e abraçando já um ideário socialista, embarcará em direcção a S. Tomé. Move-o talvez o espírito de investigação e simultaneamente de aventura que vai aquilatando nas conversas de Teófilo Braga, nas leituras das utopias maravilhosas de Júlio Verne e nas proezas dos exploradores portugueses. No seu livro “Memórias e Aventuras” Ladislau Batalha descreve a viagem do barco “La Plata” na sua ida para S. Tomé, duma forma bastante rápida. Porém, nas conferências que realiza na Universidade Popular ligada ao Partido Socialista, em Lisboa nos anos 20, Ladislau Batalha é muito mais minucioso nas suas descrições, a propósito da sua primeira viagem à volta do mundo. Conta-nos a sua chegada a Cabo Verde onde a fome se abatia sobre a população. Descreve a cidade do Mindelo, de S. Vicente e de Santo Antão. Nestes resumos das conferências realizadas na Universidade Popular, publicados no Jornal “O Protesto” de 1922, Ladislau Batalha descreve a sua visita à Serra Leoa e a ida a Cabo Palmes a bordo duma canoa tripulada por “kruboys”. Veio uma grande trovoada e a canoa vira-se na calema. Mas ele sobrevive à tempestade e apanha o barco “Budugru” que o leva costa à costa, passando por Gran-Bassa até Monróvia. Descreve esta cidade. E em Gran-Bassa toma um barco que o conduz a S. Tomé.[12]
Mas é a experiência na ilha de S. Tomé que lhe proporciona um verdadeiro salto nos seus anos de aprendizagem.
Aos 21 anos, em 1877, como ele conta, irá substituir um funcionário da Curadoria, organização adstrita ao governo no controlo e fiscalização do trabalho dos serviçais. Vamos contar, rapidamente, o contexto que se vive em S. Tomé. Em 1869, anos antes da chegada de Ladislau Batalha a S. Tomé, todos os escravos foram declarados libertos. Porém, continuavam escravizados “de facto”. Porem, o governador de S. Tomé, Gregório José Ribeiro tivera que declarar sete mil e quinhentos libertos em virtude de uma revolta. Os escravos deixaram as plantações e preferiam morrer de fome do que continuarem com aquele trabalho de escravo. O governador Gregório José Ribeiro acusara os padres crioulos que negligenciaram o trabalho da Igreja e ajudaram à instalação de um clima de contestação. Mas finalmente cedera, face aquele mar de gente disposta a morrer. Em 1875, a criação da Curadoria Geral dos Indígenas deveria regular as contradições entre os empresários interessados na dominação escravocrata e o Estado, obrigado a aceitar as directivas internacionais formuladas e difundidas pela Sociedade de Geografia de Lisboa, fundada em 1875 e que procurava alinhar pelo vento dominante da nova etapa colonial. Muitos roceiros não perdoaram ao governador Gregório Ribeiro de ter permitido a contestação às formas opressivas do trabalho rural. Depois do seu afastamento com a substituição pelo novo governador, Stanislau Xavier de Assunção e Almeida, tudo parecia voltar novamente ao mesmo. Chegavam novos barcos com negros acorrentados por ordem de gerentes de uma feitoria holandesa para virem trabalhar nas roças. E a Curadoria de S. Tomé parecia fechar os olhos às atrocidades e barbaridades cometidas pelos rosseiros em relação aos serviçais.
À chegada a S. Tomé, Ladislau obtivera um posto de manga de alpaca, na secretaria do governo geral. Dois anos mais tarde, em pequenos enxertos de uma crónica de jornal[13] ele descreve a pacatez inebriante dos primeiros tempos da sua estadia naquelas paragens. Passeia-se de canoa, extasiando-se com os panoramas verdejantes desta ilha quase virgem. Vai às festas na freguesia de Sant’Anna. E estabelece conversas com os “Angolares”, disposto a escrever uma monografia sobre a ilha. Descreve também a tradição religiosa da comunidade dos Angolares sobre o “guégué”, espécie de culto panteísta às árvores sagradas. “O “guégué” é uma árvore secular, anterior a tudo quanto existe e que hoje se conserva vacilante sobre a idade da sua futura duração.”[14]
Em carta a Teófilo Braga, de 24 de Agosto de 1877, descreve alguns elementos sobre esta “gente da terra”. Preocupa-se sobre notas históricas, particularmente relacionadas com a presença longínqua de judeus. “(...) parece-me que por ordem deles, (...) D. João II e D. Manuel (...) se mandaram para aqui, abandonados, os filhos dos Judeus, afim de povoar a ilha. Rogo-lhe que me esclareça também sobre este ponto.”[15]
Nesta singular epístola Ladislau Batalha faz ainda referência a um encontro com Serpa Pinto e Capelo dizendo que se está a preparar “(...) com o fim de fazer uma compilação de dialectos africanos, trabalho que, quando no futuro estiver estudado e comparado dará, (...) grande luz sobre a etnografia, ciência onde ainda há tão poucos dados fixos e positivos.”[16]
Cumprirá a sua palavra pois mais tarde publicará na Colecção Biblioteca do Povo e das Escolas “Línguas d’África”[17] e “A Língua de Angola”[18].
No livro das Memórias, Ladislau Batalha descreve o governador Assunção e Almeida como um balofo funcionário indolente, venal e corrupto, que se deleitava burguesmente em festas, diversões e jogatinas. Ladislau embrenhava-se pela ilha adentro. A sua curiosidade etnográfica ia observando os costumes locais, danças e os artefactos artísticos das populações. Mas, pouco a pouco vinham-lhe informações dos tratos impiedosos que os roçeiros cometiam contra os serviçais. E mesmo se procurava, no idílico conforto da sua cabana, aproveitar as belezas da ilha, as vozes clamando justiça acabavam sempre por se impor. É então que num incidente imprevisível se dá uma vaga para um funcionário na Curadoria Geral. Embora fosse um lugar de 3º oficial, aconteceu que, por ausência dos funcionários superiores, teve que assumir o papel de fiscalizador das novas leis dos serviçais. E assim, um dia, acaba por ter de enfrentar o proprietário da Roça Rio do Ouro. O Dr., arrogante, tenta amesquinhá-lo mas logo em seguida, face à intransigência de Ladislau, acena-lhe com mil libras trimestrais – “(...) São mil libras trimestrais.Ouviu? Tanto não vale a vida dos negros (...). Mal podendo conter um gesto que envolvia profunda revolta e desprezo, levantei quilombo, despedindo-me secamente fui-me com todos em correcção às outras roças, não obstante a estranheza do Dr. que, cabisbaixo, ficou a contemplar-nos por alguns instantes. Esboçando um sorriso ameaçador e um encolher de ombros de desdém, desapareceu. Também nós já íamos longe.”[19]
Ladislau não cede à corrupta oferta e exige inquirir todos os casos nos contratos dos serviçais da roça. A sua posição intransigente fê-lo denunciar as injustiças e barbaridades cometidas pelo roceiro. “Depois de apresentar um relatório (...) os contratos foram definitivamente rescindidos e o Dr. intimado a satisfazer todas as despesas ocasionadas. (...) Por essa ocasião mereci grandes louvores que cheguei a julgar sinceros e leais. (...) Ao mesmo tempo (...) eu ia arquitectando outras acções com as quais para o futuro contava corrigir algumas das muitas iniquidades da nossa mal orientada colonização. Já divisava indícios da intriga que contra mim principiava a germinar (...). Aos ouvidos chegavam-me rumores de que eu não sairia mais em serviço da Curadoria.”[20]
Ladislau Batalha, depois dos acontecimentos que sucederam com a temporária substituição do Curador, volta novamente para a secretaria do Governador. Autorizado pelo chefe da secretaria para abrir a correspondência antes de ir para despacho, uma certa manhã, à chegada do barco de Lisboa, é-lhe remetida a correspondência desse dia para o Governador com o respectivo ofício de remessa. “Quebrados os selos da segunda saca, fui separando os invólucros que traziam a nota urgente”.[21]
Foi com espanto que Ladislau Batalha viu uma notificação para que o prendessem pois encontrava-se na situação de refractário à tropa. Ladislau não podia deixar de pensar que isto era uma ação de retaliação pelo que sucedera quando substituíra o Curador na fiscalização dos roceiros. Descreve assim a seguinte cena: “Era a hora de soalheiro. O reverbero das paredes exteriores do edifício, estucadas a branco envernizado, tornava insuportável, de calor, todo o recinto de meia laranja, fronteiro à repartição. Nem vivalma se divisava (...) amarfanhando um pouco (a notificação confidencial) peguei-lhe fogo numa das extremidades. E enquanto estava ardendo, eu ia desenhando círculos de fogo no espaço. E sorrindo, desdenhoso, pela vitória que me pareceu estar ganhando...”[22]
Foi assim que se decidiu a tomar o primeiro barco que saía de S. Tomé. Dois dias depois embarcava na barca “Flor de Loanda” em direcção a Angola. Tem agora 21 anos. Completa assim os três septénios da primeira parte da sua biografia, que constitui o primeiro período iniciático dos seus anos de aprendizagem.

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[1] Batalha, Ladislau “Memórias e Aventuras”, Ed. J. Rodrigues, Lisboa, 1928 
[2] Idem, pág. 10 
[3] Batalha, Ladislau “Consequências de um Sim”, Ed. Aunaya, 1873 
[4] Batalha, Ladislau “Carta a António Rodrigues Sampaio”,Ed. Tip.Calçada do Conde de Penafiel, Lisboa, 1876 
[5] Idem pág. 12 
[6] in Rodrigues, Jacinto “Perspectivas sobre a Comuna e a 1ª Internacional em Portugal”, pág. 146, Ed. Slemes, Livraria Bertrand, Lisboa, 1976
[7] Idem, pág. 156 
[8] in Diário Ilustrado, Maio de 1863 
[9] Batalha, Ladislau “Gomes Leal na Intimidade”, Ed. Livraria Peninsular, Lisboa, 1933 
[10] Batalha, Ladislau “O Directório Republicano”, Ed. Nova Livraria Internacional, Lisboa, 1876 
[11] Idem, pág. 5 
[12] in Jornal “O Protesto”, 1922 
[13] in Jornal de Loanda – Fragmentos de um memorial inédito, nº 23, 1878 
[14] Idem 
[15] in Espólio Teófilo Baga – Museu da Presidência da República, Carta de Ladislau Batalha a Teófilo Braga, 24 de Agosto de 1877. 
[16] Idem 
[17] Batalha, Ladislau “Línguas d’África”, Compª Nacional Editora, Lisboa, 1889 
[18] Batalha, Ladislau “A Língua de Angola”, Compª Nacional Editora, Lisboa, 1891 
[19] Op. Cit. Pág 55 
[20] Idem, pág. 59 
[21] in Batalha, Ladislau “Memórias e Aventuras”, Ed. J. Rodrigues, Lisboa, 1928 pág.75. 
[22] Idem, pág.76.

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A Visão Antropológica do Colonialismo Português e o Olhar Singular de Ladislau Batalha

Jacinto Rodrigues 
Professor Catedrático da FAUP

Resumo No contexto do darwinismo social e do positivismo dominante da antropologia portuguesa da segunda metade do séc. XIX, revelam-se os trabalhos empíricos de etnolinguística e de divulgação sociológica africanos, empreendidos por Ladislau Batalha. A vivência em Angola e Cabo Verde e simultaneamente as viagens cosmopolitas deste “anarco-socialista” português, permitiram-lhe um olhar singular.

Olhando para a história da antropologia dos sécs. XIX e XX é fácil verificar que a tese humanista só se vai impôr decisivamente no pensamento ocidental depois da 2ª guerra mundial. Uma raciologia dominante caucionou o processo de dominação e exploração colonial. A grande ruptura epistemológica com a ideologia racista pode assim assinalar-se com o texto da carta das Nações Unidas em 1945, impondo a ilegalidade do racismo. Mas veja-se que só em 1978 a UNESCO publica a declaração sobre “raça e os preconceitos raciais” onde se afirma claramente que as diferenças nos povos se explicam por factores geográficos, políticos, económicos e sociais, afastando o conceito de “raça”. O séc. XIX e a primeira metade do séc. XX estão ainda impregnados por um paradigma raciológico em sintonia com uma ideologia positivista e mecanicista da visão antropológica. A antropologia nasce como imperativo das necessidades de conhecer os povos colonizados. É sobretudo uma antropologia física que pretende taxonomizar os colonizados. A craneometria e a antropometria são as técnicas seguidas para essa classificação. A base conceptual assenta no pseudo-conceito de raça. É este conceito que constitui uma peça instrumental que impõe um registo ao discurso colonial. Torna-se o fundamento epistemológico que determina o “pré-conceito”, o juízo apriorístico da desigualdade social entre os homens. Durante toda a segunda metade do séc. XIX, momento decisivo na formação da “Antropologia”, dominam as figuras como Paul Brocca cuja prática antropométrica o levara à pseudo-demonstração científica da superioridade da raça branca. Paul Brocca, em 1861, pretendia fornecer dados “objectivos e científicos”: o cérebro dum branco, segundo ele, pesaria 1003 gramas e o dum negro 925,5 gramas. Esses dados variavam de especialista para especialista mas acautelava-se sempre a superioridade branca!... Por exemplo, Topinard refere, em 1882, no Boletim da Sociedade Antropológica de Paris, que os homens europeus tinham 1560 cm3 de massa encefálica enquanto que os asiáticos possuíam 1510 cm3 e os negros apenas 1405 cm3.[1] Esta pseudo-ciência, assente em mostragens nunca explicitadas, pretendia contudo apresentar-se como científica e objectiva através dessa quantofrénica abordagem feita por uma panóplia de compassos e réguas calibradas segundo uma norma. Exemplos destes tornavam-se assim a caução dum paradigma que se tornou geralmente aceite pelos especialistas da recente ciência antropológica. As grandes revistas mundiais ilustradas como o “Journal des Voyages”, “Tour du Monde” e “L’Illustration”, assim como as revistas nacionais como “Occidente”, “Archivo Pitoresco” e “Diário Ilustrado”, traziam imagens e textos que se tornavam a inculcação deste credo dominante: a iconografia representava o “figurino” de selvagem e os textos louvavam a acção civilizadora dos brancos. Uma investigação sobre as principais imagens, gravuras e fotografias das revistas sobre viagens e explorações científicas revelam o olhar depreciativo sobre os ditos “povos primitivos” e as populações selvagens. Esta moldura epistémica fundamentava-se ainda no darwinismo social difundido por Gobineau, Letourneau, Haeckel e Herbert Spencer. Imprimia-se uma leitura redutora de Darwin insistindo-se apenas nos conceitos “strugle for life” e na selecção do mais forte. Através do positivismo de Compte muitos desses antropólogos pretendiam ligar o “panbiologismo” racista com uma história social inscrita no naturalismo e num esquema linear mecânico do “progresso” da humanidade. Surgiu assim uma escatologia do “progresso” que servia os interesses da colonização sob a capa filantrópica duma missão civilizadora. O positivismo de Compte, embora sem aparecer ligado ao racismo, serviu também para afirmar uma única via civilizacional: o “ocidentalocratismo”. Haeckel colocou a raça “ariana” no topo da hierarquia das raças. E Letourneau, partindo da tese “poligenista”, elaborou uma pseudo “construção científica” que se revelou naquilo que Laurent Muchielli[2] chamou o “paradigma evolucionista racial” em sociologia que afectou mesmo algumas correntes do pensamento político, ditas socialistas. Nas duas últimas décadas do séc. XIX, Letourneau, na linha de Gobineau, dividia a humanidade em 3 grandes tipos cuja aproximação com a animalidade se apresentava da seguinte forma ascendente: O homem negro com cérebro pequeno, prognatismo nos maxilares e crâneo dolicocéfalo era o mais próximo do animal; O homem amarelo, já mais afastado da animalidade, tinha um rosto mongolóide, cérebro medianamente desenvolvido e crâneo braquicéfalo; O homem branco, diferenciado dos animais, tinha o cérebro grande, maxilares reduzidos e sem prognatismo. Assim, toda a “craneologia” e “antropometria” de Brocca e Topinard estava inserida numa observação e diagnóstico ditos científicos que pretendiam conferir a tal objectividade quantofrénica à raciologia da época. Assim as principais instituições, cursos e revistas dedicados à antropologia e à sociologia vão destilar esta ideologia raciológica de que o colonialismo estava sedento para os seus objectivos de exploração. As várias sociedades antropológicas e sobretudo as sociedades geográficas no mundo serão os motores desse olhar e constituem os pólos das principais escolas de antropologia colonial. Os “habitus” provenientes desta mundividência expressos em opiniões, comportamentos e atitudes constituem o campo filosófico que se abateu no pensamento ocidental como “normal, objectivo e científico” fornecendo ao colonialismo e ao imperialismo um “normal” procedimento político. É difícil compreender esta atitude desumana e racista sem compreender historicamente as raízes do fenómeno! É preciso compreender, sem contudo nos deixarmos de indignar diante do sucedido, a “ construção” e “reprodução” na emergência dum campo epistemológico raciológico, fundamentação ideológica da prática instrumental de exploração colonial e expansão imperialista. As formas do poder e do saber interagem em relações discursivas e em descontinuidades tão complexas que as técnicas de controlo e de auto-persuasão voluntária se interiorizam e inculcam em opiniões, comportamentos e atitudes. Acabam assim por desenvolver uma disciplina que resulta, como diz Foucault[3], na multiplicidade sinergética dos aparelhos de estado, das estruturas militares, escolares, médicas, psicológicas e psiquiátricas, para a consolidação da episteme sócio-cultural duma época ou duma sociedade dominante. Mas está sempre presente na realidade social a conflitualidade social, a luta que opõe os interesses de classe. É isto que se entende por paradigma raciológico. É uma sociedade em que o ponto de vista racista está instalado. Faz parte de um quotidiano “normalizado” que caucionado pela ideologia científica, não necessita de um racismo activo. Satisfaz-se com o auto-convencimento da sua dita normalidade, a sua aparente objectividade factual. O conceito de “raça” e a sua hierarquização constituem a problemática, o enquadramento ideológico que tende a excluir qualquer forma de pensamento contra-corrente. A construção desta episteme, para maior eficácia, tende a ser reproduzida. Reproduzida especialmente para ser inculcada junto daqueles que são considerados inferiores. O objectivo estratégico consiste em submeter a essa dominação, a interiorização consentida dessa “inferioridade”, tornada também por eles, “normal” e objectiva. Mas a realidade social é uma realidade dinâmica e conflitual. As contradições sociais, as contradições do modo de produção e os antagonismos das relações sociais, impedem a manutenção do pensamento único no processo histórico feito pela lógica da exploração de classes. Assim, a concepção que pretendia tornar-se a visão objectiva e única da realidade, teve os seus contraditores porque o antagonismo é inerente à sociedade capitalista do séc. XIX. Existiram assim, contra o panbiologismo racial, homens da ciência daquele tempo que se opõem ao Darwinismo social, introduzindo interpretações diferentes ao evolucionismo. Kropotkine, conhecido biólogo e filósofo social russo, considerou que no processo de evolução existem factores de “mútuo apoio” e solidariedade que impedem uma leitura redutora do transformismo. Kropotkine foi um conhecido anarquista que deu uma interpretação específica ao evolucionismo de Darwin, introduzindo relações de solidariedade, cooperação e complementaridade nos ecosistemas. E a leitura que neo-Lamarkistas como Félix le Dantec farão do processo do evolucionismo, leva-os a considerar os factores geológico, climático e geográfico, decisivos no processo de evolução histórica, pondo em causa o causalismo linear teleológico. Laurent Muchielli[4] demonstrou também, desde 1895, que Durkheim critica uma antropologia limitada aos estudos anatómicos, a que chamou o “grupo antropológico e etnográfico” da linhagem Brocca, defendendo uma antropologia das civilizações. Em 1897 Durkheim afirma que a palavra raça não se reportava a nada de definido. O que existem são povos. E as “raças”, dizia Durkheim, são palavras inadequadas. O seu uso incorrecto serve para denominar as nacionalidades - realidades sociológicas dinâmicas. Contudo, a mais importante concepção do mundo contrária a esse darwinismo social foi o marxismo. Toda a problemática histórica introduzida por Marx exige uma outra episteme. É que a problemática raciológica que colocava a contradição entre as raças, é totalmente diferente à explicação das mudanças históricas através da luta de classes. A desconstrução do paradigma raciológico faz surgir uma outra compreensão da história da humanidade – as mudanças históricas são o resultado dessa luta de classes que intervêm em campos ideológicos divergentes no processo histórico. No entanto, a explicitação da luta de classes como o motor explicativo das mudanças sociais vai estar sujeita aos ataques, orientação racista e colonialista que encontra também no anti-semitismo o factor essencial para a manutenção duma explicação biológica. No final do séc. XIX, o caso Dreyfus constitui um exemplo paradigmático da apropriação, pelos conservadores, do preconceito anti-semita para prolongar e justificar a raciologia imperialista. O anti-semitismo propalado por Drumond e seguido por inúmeros intelectuais anti-“dreyfusards” constitui um reforço da ideologia raciologista. A falsificação de documentos e o erro judiciário sobre a falcatrua persecutória contra o capitão Dreyfus levantaram uma onda de anti-semitismo na viragem do século. Essa onda ideológica serviu também para alimentar o racismo para com africanos e asiáticos. O “perigo amarelo” constituiu também uma versão “popular” de ódio racial contra a emigração chinesa, em particular nos Estados Unidos da América do Norte, e contra a crescente importância do Japão na economia mundial. É neste contexto que nas últimas décadas do séc. XIX se desenvolverá em Portugal a antropologia e a antropologia colonial. O atraso da penetração das ideias do marxismo em Portugal, tal como analisou Alfredo Margarido,[5] com a ausência duma sociologia assente na análise de classes, contribuirá para que toda a antropologia do final do séc. XIX e princípios do séc. XX fique eivada da raciologia dominante que acabámos de descrever no contexto europeu. As ideias do darwinismo, do positivismo e da ideologia republicana ganharão força junto das elites científico-culturais do país que vão hegemonizar a sociedade portuguesa especialmente no final da primeira década do séc. XX. A partir de 1876, a Sociedade de Geografia de Lisboa vai desenvolver um desígnio imperial português tendo por detrás um largo apoio da população que, na miragem dum novo Brasil e África, sonha com a saída da miséria em que se encontra. A partilha imperial da África vai aguçar ainda mais os interesses da expansão colonial portuguesa. A expedição dos exploradores Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto, constitui um passo de afirmação da vontade de ocupação. Depois, em 1894, a conferência de Berlim estimulará ainda mais as campanhas de ocupação. E quando se abate sobre a política colonial portuguesa o Ultimatum da Inglaterra que não permite a partilha do “bolo” ao governo português, vai dar-se uma histeria nacional em torno dum patrioteirismo descabelado. Subscrevem-se peditórios para a compra de um navio de guerra para fazer face ao império inglês. Os republicanos serão mesmo os mais empenhados de tal maneira que a revolta do 31 de Janeiro de 1891 pode ler-se como um descontentamento contra a fraqueza da monarquia face à empresa colonial. Entretanto, nos estudos antropológicos tinham-se já iniciado investigações no sentido de melhor se conhecerem e controlarem as realidades coloniais. Os trabalhos do militar antropólogo Fonseca Cardoso utilizando a antropometria de Topinard e os cursos de antropologia, em Coimbra, organizados por Bernardino Machado, inscrevem-se nessa estratégia global. A revista “O Positivismo” dirigida por Teófilo Braga e Júlio de Matos marcavam já a cultura erudita das elites intelectuais e políticas em Portugal em busca duma identidade nacional qe afirmasse uma hierarquia de superioridade na problemática da raciologia, como já dissemos. Uma visão ligada ao “cientismo” vai revelar uma relação directa entre o republicanismo e a nova etapa colonial. Assim, o contexto republicano continuará marcado pelo mesmo campo epistémico panbiologista e de darwinismo social que vê na progressão linear e mecânica da etapa positivista a caução para a nova etapa da exploração imperialista. Ricardo Roque,[6] Ana Leonor Pereira[7] e Fernando Catroga[8] mostraram duma forma clara o carácter raciologista da geração doutrinária da antropologia dos finais do séc. XIX e princípios do séc. XX. A influência de Gobineau, Herbert Spencer, Haeckel, Brocca e Topinard constituíram assim os pilares do cientismo positivista da antropologia portuguesa. Teófilo Braga, Oliveira Martins, Consiglieri Pedroso, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, Fonseca Cardoso, Júlio de Matos e Miguel Bombarda fazem a defesa do determinismo evolucionista, do elogio do arianismo, da superioridade da raça branca e do elitismo darwinista social. A antropometria de Brocca serviu de metodologia para as primeiras investigações antropológicas no campo da antropologia colonial. Todos estes discursos da antropologia estão assim intimamente ligados a um paradigma histórico bem caracterizado e não podem ser entendidos se não houver uma teoria filosófica capaz de compreender a génese dos discursos científicos e a relação ideológica do poder dominante. Porém, também em Portugal alguns dos pensadores anarquistas, influenciados por Kropotkine e Elysée Reclus, vão desenvolver uma filosofia da história em que a “selecção do mais forte” e a “luta pela vida” darwinista estão contrariados por uma visão da solidariedade, mesmo ao nível da natureza, com o chamado “apoio mútuo” existente na natureza. Por outro lado um certo relativismo anti-dogmático levantará questões ao mecanicismo linear do positivismo dominante. É neste contexto, do paradigma antropológico dominante, que se vai desenvolver o pensamento singular de Ladislau Batalha. Vamos aqui tentar descrever como uma progressiva ruptura se estabelece na obra deste militante do movimento operário que vai evoluindo de republicano federalista para o anarquismo e para o socialismo, vindo mesmo a ter contacto com as ideias de Marx. Nesse posicionamento é preciso ter em conta não apenas a cultura teórica que cultivou nos livros e artigos que escreveu, mas sobretudo uma vivência de contactos humanos com uma vasta experiência social e intercultural que lhe permitiram desconstruir a episteme colonial que era dominante no país donde partiu à aventura. Ladislau Batalha escreverá um livro editado em 1908, cujo título “O Negativismo” é já por si significativo. Negativismo por oposição a positivismo. Este livro, que tem como subtítulo “Viagem aventurosa nas regiões do Ideal”, constitui uma transição entre uma episteme ainda devedora do positivismo. Pretende sair da visão dogmática do cientismo para uma alternativa. Contudo, não tem suficiente ruptura epistemológica para se libertar. Daí a ambiguidade do prefácio escrito pelo conhecido médico Miguel Bombarda que demonstra ainda uma dependência de Ladislau Batalha a um eminente representante do positivismo e do cientismo, embora também com alguma abertura ao socialismo. É curioso como Miguel Bombarda caracteriza a escrita de Ladislau Batalha. “Se o seu livro se chamasse as mentiras do universo não lhe iria descabido o título.(...) É um campo aberto, esse seu livro, em que combatendo-se pelo determinismo o próprio determinismo se ataca; em que degladiando-se contra a erudição tão larga erudição de patenteia; em que, sobretudo, na obra científica do homem se faz a parte – ai de nós, a larga parte! – da fantasia e do sentimento. É uma colossal obra de pessimismo essa que se condensa em 400 páginas de leitura, tão empolgante como estranhamente original (...). Nem sempre me tem a seu lado e sobretudo não me tem a seu lado quando quer demonstrar que a suprema mentira é o altruísmo e que a luta dos egoísmos é a condição mesma de progresso e civilização.” [9] O livro de Ladislau Batalha tem um aparelho bibliográfico quase todo ele dependente da ideologia positivista, embora aqui e acolá surjam referências a Elysée Reclus, Bakounine, Malatesta, Kropotkine e Hamon, representantes da corrente anarquista. Em muitos pontos da obra, o autor procura lutar contra o cientismo, esbracejando argumentos que não lhe garantem, no entanto, suficiente auto-estima para romper com os mestres com quem ele conviveu como auto-didacta, nomeadamente quando frequentou o curso superior de letras, com Teófilo Braga, em 1873. Aqui e acolá Ladislau tropeça em conceitos que o armadilham à problemática positivista. Mas, outras vezes, Ladislau Batalha diz-nos, em franca ruptura com o positivismo: “A expressão progresso não tem significação menos ilusória do que outra qualquer”[10] Esta afirmação serve para pôr em causa a consideração da ideologia dominante em convencionar-se como civilizado aquele que usa explosivos, canhões, minas e couraçados para matar enquanto que o negro é não civilizado porque apenas usa azagaia. E rompendo contra os convencionalismos afirma o relativismo das opiniões: “Assim como se inventaram deuses à nossa imagem para deles nos servirmos como modelo, assim apriori dignificamos a história escrevendo-a por conjectura dentro do nosso próprio modelo”.[11] Mais adiante mostra-nos o ponto de vista contraditório entre a visão política dos grupos sociais, tomando como exemplo os célebres anarquistas franceses Ravachol, Grave e Reclus, assinalando também as diferenças de paradigmas históricos: “Ravachol, já no nosso tempo foi guilhotinado por um tribunal de jurisconsultos acusado de assassino e inimigo da sociedade. Para os anarquistas, pelo contrário, ele é mais um mártir da viciosa organização social que gera monstros e provoca iniquidades (...). A lei chama aos actuais sectários Grave e Reclus, inimigos da sociedade. Assim chamava a velha Roma aos sequazes de Cristo”[12] Neste livro, “O Negativismo”, Ladislau Batalha abre-se a teorias pouco toleradas pela visão materialista e positivista. Refere-se aos fenómenos telepáticos e a outras questões não aceitáveis pelos parâmetros da ciência positiva. Comenta essas limitações paradigmáticas: Esta “telepatização do nosso ser”[13] que ele julga ser possível tornar-se uma ciência, não será alheia aos contactos que tem com anarco-socialistas, teósofos e espiritistas como a célebre Angelina Vidal e o poeta Gomes Leal. Ladislau Batalha faz também uma reflexão de raíz gnóstica ao declarar: “O antropocentrismo revela-se inconscientemente no intuito egoísta de tomar as nossas faculdades como bitola capaz de aferir tudo o que se passa no universo. É esse egoísmo antropocêntrico que nos faz acumular grupos de fenómenos a cujo conjunto damos unidade chamando-lhe ciência”[14] Na mesma linha de preocupação filosófica refere ainda: “Examinadas as grandes aquisições da ciência, reconhece-se que elas não são menos falazes do que os dogmas teogónicos”[15]. E continua, numa clara crítica ao quantitativismo do cientismo dominante: “As matemáticas, por exemplo, mais não são do que cabalismo convencional (...) mero convencionalismo aritmético”[16] Nesses anos, o socialista Ladislau Batalha não podia deixar de expressar a corrente anarco-socialista do Movimento Operário Português, tanto mais que colaborara com o célebre dirigente operário António Ernesto Dias da Silva. Nessa época, o movimento socialista era uma amálgama de tendências várias onde dificilmente se descortinava o federalismo republicano, o anarquismo e o alvor dum marxismo ainda insípido e representado pelo seu amigo Azedo Gneco. É curioso também o facto de Ladislau Batalha ter escolhido Miguel Bombarda para prefaciar o seu livro. Pretende assim o reconhecimento científico conferido a um auto-didacta por um expoente académico. Por outro ldao Ladislau Batalha sabia que Miguel Bombarda, eminente republicano, se distanciava dos darwinistas panbiologistas recusando as teses da criminologia lombrosiana, defendida pelo seu colega positivista conservador o psiquiatra Júlio de Matos, que considerava o anarquismo como uma psico-patologia. Miguel Bombarda, defendendo o neo-lamarquismo de Félix le Dantec dava mais importância aos factores mesológicos (o meio geográfico, o clima e as questões sociais). Por isso, quando instado a examinar psiquiatricamente o anarquista que lançara umas pedras à charrete real, Miguel Bombarda recusou-se a considerá-lo um psicopata, justificando a acção desesperada do anarquista pelo desemprego e miséria em que vivia. As posições de Ladislau Batalha não resultam apenas de leituras e de investigações eruditas que fez. Os numerosos livros e as dezenas de artigos que publicou, atestam o estudo contínuo e apurado, ainda que feito de forma não sistemática e dentro de um auto-didactismo assumido. O principal conteúdo da sua visão do mundo resulta duma longa vivência com vários povos de diversos continentes. Resulta das longas viagens e de estadias com uma relação directa com o povo trabalhador porque ele próprio foi estivador no Japão e marinheiro na América do Norte. Também as amizades que estabeleceu em Angola e a sua relação amorosa com uma mulher negra cabo-verdiana de quem teve uma filha, constituíram uma vivência que lhe permitiu uma abertura inter-cultural e um olhar de um humanismo universal que superou a estreiteza ideológica do seu tempo. “Defrontei-me com bárbaros e civilizados: destes guardo a mágoa das espoliações de que fui vítima e daqueles conservo a memória de benefícios recebidos (...). Assim fiz a volta ao mundo (...) como homem de trabalho marinhando onde nem todos os marinheiros se atreviam (...). Fizeram-me caçar feras em África, abater focas no Bhering, pescar bacalhau na Terra Nova e trancar baleias por esses mares, através dos quais me familiarizei com o Atlântico, com o Pacífico e com o Índico (...). Fui potentado negro na Kissama e vendilhão da praça pública em Boston. Jornalista em Loanda, negociante em Maculumbi, taxidermista nos sertões do Nano. Tive quase simultaneamente de estudar tabelas de preços correntes e trabalhos de classificação zoológica. Nessa longa peregrinação de 11 anos, os mais felizes de toda a minha existência, porque puseram à prova a minha miséria própria em luta com a miséria social, que nunca saiu vitoriosa dos seus esforços, foi-me dado avaliar na sua maior extensão a grandeza das contradições sociais.”[17] É por isso que muitos dos seus escritos, nesse período hegemonicamente raciológico, Ladislau Batalha deixou-nos os textos mais radicais de anti-racismo e anti-colonialismo. Vejamos alguns textos seus que expressam um profundo anti-colonialismo nunca visto em outros autores do seu tempo: No livro “O Continente Negro”[18] editado em 1894 escreve: “(...) As nossas aventuras em África foram de duas naturezas diversas: a conquista e a descoberta. (...) Foi um século e meio de proezas e... de atrocidades! Sim, de atrocidades(...). Se o saque presidia às nossas impresas também a moralidade deixava tudo a desejar (...). Ricos e famosos! Este foi o verdadeiro e único móvel das nossas façanhas em África (...). Toda a fidalguia arruinada pelos desvarios e pela devassidão ia reconstituir as suas finanças no continente negro (...). Se a navegação foi arrojo de heróis, a colonização pareceu obra de ratoneiros(...). Ficamos senhores do mundo! Em Portugal não se curou mais da produção. Submeter os negros, comprá-los e vendê-los! Subjugar a Índia e avassalar o Brasil! Eis a grande preocupação. (...) Temos de aludir ao cancro da escravatura, o princípio mais bárbaro e desumano de que há memória. Parece que entre os indígenas o hábito de escravizar os seus semelhantes datava de toda a Antiguidade. Mas fomos nós e os espanhóis que lançamos mão desse abjecto recurso para nos engrandecermos à custa do trabalho alheio (...). Os negros comprados eram trazidos pelos gentios; vinham os seus próprios filhos e também os prisioneiros de guerras intestinas. Daí os conduziam os feitores (...) separados os machos das fêmeas e lá os vendiam aos casais. Os magnates de algumas possessões pediam o direito de comprar e vender escravos como hoje se reclama o sufrágio universal ou a liberdade de culto.”[19] Ladislau Batalha cita alguns autores coevos, nomeadamente Fernão de Oliveira que escreve em 1555 e lhe permite fundamentar a “odiosa negociação da escravatura feita com doutrina do ardor e da fé”[20] Prossegue ainda com os seus profundos vitupérios à colonização: “(...) As descobertas d’África só trouxeram glória aos descobridores. A nação que descobriu empobreceu-se e o continente descoberto não alcançou felicidade (...). O espírito de interesse, o ânimo do saque, a preocupação da riqueza e ambição tresandam de cada frase, de cada comentário, quer consultemos Azurara, Barros, Castanheda, Couto, Faria Sousa ou outros quaisquer dos nossos antigos cronistas e historiadores(...). Saltavam os nossos heróis em terra, apanhavam os inofensivos filhos do país, homens, mulheres e crianças, que traziam às vezes cobarde e barbaramente amarrados(...). [21] E, numa tirada de estilo arrevesado próprio dum viajante há 11 anos afastado de Portugal, continua: “Consideradas as conquistas em relação aos povos das terras conquistadas, é problemático se os europeus, levando àquelas regiões a civilização e o progresso, também serão portadores da felicidade. É esta puramente relativa, e pode-se bem asseverar que a imensa família de proletários da europa seria mil vezes mais feliz se, em vez de possuir os arrobos de ventura para ela simbolizada apenas na contemplação de maravilhas e assombros de arte e luxo, pudesse trocar o seu desassossego de espírito e excesso de privações, pela serenidade e abundância dos povos virgens do continente negro, os quais se dão por satisfeitos com possuirem algumas companheiras, uma espingarda, pólvora, tabaco, palmares e peixe seco (...). São ricos na sua miséria porque de nada mais precisam além do que possuem e esta ventura é-lhes arrancada pelas ofertas da civilização, pronta sempre a despertar-lhes os sentidos com as promessas de luxo e de gozo! (...) O maior empenho foi sempre apoderarmo-nos em África das terras e bens alheios, tudo saquear exercendo os maiores despotismos no isolamento, porque se nos não opusessem as outras nações europeias. (...) [22] No livro “A Burla Capitalista – Crítica da Sociedade Contemporânea”[23] editado em 1897, Ladislau Batalha, pondo em causa toda a corrente ideológica e eufórica dominante na vida portuguesa sobre a vitória contra Gungunhana, pergunta: “Gostaria o governo do senhor D. Carlos que lhe fizessem o que por ele foi feito ao Gungunhana e sua corte?”[24] Ladislau Batalha, na linha do famoso geógrafo anarquista Elisée Reclus que cita abundantemente em vários dos seus livros, distingue descobrimento e colonização: “Compreende-se que não é nosso intuito amesquinhar sistematicamente o valor dos cometimentos marítimos dos portugueses (...). Certamente foi grande a audácia desses velhos pioneiros do mar, corsando através da imensidade desconhecida. A civilização mesmo tem de nos agradecer a ambição desmedida que nos fez comprar o progresso das sociedades pelo preço da nossa ruína. Mas a história, implacável nos seus juízos, não pode deixar-se arrebatar pelo simbolismo de imagens fantasiosas e têm de se apreciar os factos na nudez da sua realidade. (...) Os descobrimentos dos peninsulares devem ser apreciados com a maior frieza filosófica e muito principalmente sob o ponto de vista da sua importância no sentido das vantagens que trouxeram à lei do progresso e civilização. (...) Tão grandiosas empresas, sobejam as provas, tiveram sempre por únicos móveis a ambição, a inveja e vaidade – fragilidades humanas – e nunca o patriotismo nem o fantástico amor da fé. Não foi acaso o ciúme de Veneza e o interesse das riquezas que conduziu Vasco da Gama através dos mares?” Ladislau Batalha apercebe-se contudo que já nas próprias descobertas se envolvem motivos de exploração. E que a avantura do descobrimento tem por detrás a cobiça económica. “Desde as primeiras aventuras marítimas o nosso único empenho não foi tanto descobrir, como dominar, explorar, adquirir sem produção e sem trabalho, usando principalmente da força e manha. (...) Por isso, ainda ao descobrimento sucedia a sofreguidão de guardar a ocultas, manter pela força uma integridade que não sabíamos conservar pela moral. Queríamos roubar e saquear às escondidas para que se nos não opusessem. (...) A nossa vida tornou-se a dos ratoneiros. Rapinávamos nas conquistas ouro, pérolas, especiarias, marfim, perfumes, pedras preciosas, vinhos da Madeira, açucar do Brasil e S. Tomé, etc. E tudo isto ia para Flandres, Anvers e Inglaterra que nos mandavam as fazendas com que nos cobriam as nossas carnes, os estofos com que adornávamos as nossas janelas, as cadeiras em que nos sentávamos, os leitos onde dormíamos, as colchas, os cobertores... Tudo, enfim, quanto é produto do trabalho, de lá nos vinha a troco do que saqueávamos. Lisboa, Portugal inteiro, tudo se nundou de escravos para nos servir, por isso que, no dizer (...) de Clenardo, não era lícito que um homem galan trouxesse na mão um mínimo objecto.” [25] Num outro opúsculo “Pátria e Conversão - Verdades Amargas” [26] Ladislau Batalha prossegue com as suas invectivas contra o colonialismo português que conhecia por ter vivido emS. Tomé, Angola e Cabo-Verde. “Em 1876, quando já a escravatura era abolida de facto e de direito em toda a África, ainda no interior de Angola os portugueses compravam e vendiam escravos, sendo as próprias autoridades, até chefes de concelho, às vezes, os que realizavam tão odiosas transacções ou as toleravam dentro da área da sua jurisdição, mascarando-as com o nome de resgate. É inútil negar ou contestar. Os africanistas todos o sabem e eu próprio o observei nas minhas longas peregrinações através do continente” [27] Ladislau Batalha tem uma posição clara sobre o racismo. É por isso que encontramos também sobre a temática do perigo amarelo, uma posição frontal de Ladislau Batalha contra uma visão chauvinista e ocidentalocrática em relação aos povos asiáticos. No momento em que ele publica o livro “O Japão por Dentro” [28] verificava-se uma onda anti-nipónica muito forte. Conhecendo a realidade japonesa por ter vivido nessas paragens em 1882, Ladislau Batalha vai claramente opor-se “à corrente de opinião que insiste em ver no desenvolvimento do império japonês uma feição do fantasiado perigo amarelo”.[29] Ladislau Batalha afirma: “O perigo só chegou quando o Japão, progredindo, principiou a dispensar-se de mais importações. Quando o seu pessoal já instruído e habilitado começou a substituir os estrangeiros que nem sempre se mostraram dignos e honestos. Portanto, o perigo amarelo não diverge dos perigos de qualquer outra cor. É um dos perigos de carácter industrial, um perigo essencialmente capitalista (...). O perigo amarelo é apenas a reacção contra o perigo branco”[30] É também no estudo que dedica à história portuguesa que ele manifesta o mais veemente repúdio ao anti-semitismo. No seu livro “Curiosidades da História Portuguesa” [31], publicação que vinha sendo anunciada desde os primeiros anos do séc. XX com o título de “Portugal no séc. XVI”, Ladislau Batalha desenvolve toda uma interpretação da decadência portuguesa. Explica: “O influxo terrorista comunicado pela Inquisição à sociedade portuguesa, com a desvairada perseguição aos judeus, imprimiu à literatura nacional, já nos fins do século, um carácter de misticismo doentio que só mais tarde dificilmente veio a desfazer-se e não de todo. Ainda hoje ele se faz sentir entre nós(...). A brecha aberta na sociedade portuguesa pelo terrorismo das espoliações e expulsão dos judeus, pode e deve considerar-se irreparável. Este monstruoso crime nacional cimentou para sempre a miséria de que não mais conseguiremos libertar-nos.”[32]
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[1] in Ruscio, Alain “Credo de l’Homme Blanc”, Ed. Complexe, Bruxelles, 1995 
[2] in Muchielli, Laurent “Les Durkheimiens et la raciologie”, Revue d’Histoire et Archives de l’Anthropologie, Ed. Gradhive, 1997
[3] in Foucault, Michel “Surveiller et Punir”, Ed. Gallimard, Paris, 1975 
[4] in Muchielli, Laurent “Les Durkheimiens et la raciologie”, Revue d’Histoire et Archives de l’Anthropologie, Ed. Gradhive, 1997 
[5] in Margarido, Alfredo “A Introdução do Marxismo em Portugal (1850-1930)”, Guimarães Editores, Lisboa, 1975 
[6] in Roque, Ricardo “Antropologia e Império”, Ed. ICS, Lisboa, 2001 
[7] in Pereira, Ana Leonor “Darwin em Portugal”, Ed. Livraria Almedina, Coimbra, 2001 
[8] in Catroga, Fernando “A História através da História”, Ed. Círculo de Leitores, Lisboa, 2000 
[9] in Batalha, Ladislau “O Negativismo”, Parceria António Maria Pereira Livraria Editora, Lisboa, 1908 [10] idem, pág. 14 
[11] idem, pág. 51 
[12] idem, págs. 77/78 
[13] idem, pág. 147 
[14] idem, pág. 158 
[15] idem, pág. 192 
[16] idem, pág. 193 
[17] in “O Negativismo”, págs. 3 a 5, Parceria António Maria Pereira Livraria Editora, Lisboa, 1908 
[18] in Batalha, Ladislau “O Continente Negro”, Biblioteca do Povo, A Editora, Lisboa, 1ª edição 1894 [19] idem págs. 31, 32, 33 e 37 
[20] idem, pág. 39 
[21] idem, pág. 39 
[22] Idem, págs. 53, 55 e 57 
[23] in Batalha, Ladislau “A Burla Capitalista – Crítica da Sociedade Contemporânea”, Ed. Instituto Geral de Artes Gráficas, Lisboa, 1897 
[24] idem pág. 20 
[25] idem págs. 126, 127, 169, 170 
[26] in Batalha, Ladislau “Pátria e Conversão – verdades amargas”, Biblioteca Socialista dos Anjos, Tipografia da Empresa Editora e Tipografia, Lisboa, 1898 
[27] idem, pág. 25 
[28] in Batalha, Ladislau “O Japão por dentro”, Parceria A. M. Pereira Editora, Lisboa, 1906 
[29] idem pág. 122 
[30] idem, págs. 123 e 124 
[31] in Batalha, Ladislau “Curiosidades da História Portuguesa”, Livraria Editora Guimarães, Lisboa, s/d 
[32] idem, págs. 182 e 183

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