INTERVENÇÕES CÍVICAS


Carta à minha filha Margarida, a propósito da morte de Nelson Mandela e dos desenhos que ela fez em homenagem a este meu herói:

30 de Janeiro de 2014,

(...)Gostei do teu Nelson Mandela, desenho expressivo. Espero que me dês autorização para o meter no meu blogue onde quero ainda escrever um texto sobre a filosofia Ubuntu que parece ter estado sempre presente em Nelson Mandela e que eu também gostaria que estivesse sempre presente na nossa família.

Ubuntu é uma filosofia originária de uma tribo africana e que se encontra hoje disseminada em toda a África.
Deixo-te aqui alguns extratos que encontramos na net e foram motivo de reflexão do Reverendo Sul-Africano, Desmond Tutu, Nobel da Paz, amigo de Mandela e grande referência em África e no Mundo.
Existe uma estória atribuída à ideologia Ubuntu que circula na internet, cuja autenticidade é difícil de comprovar, atribuída à filósofa Lia Diskin, mas que, no entanto, contém um grande ensinamento para que nós, ocidentais inseridos no mundo do consumismo e da competição, reflitamos a respeito.
Um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Como tinha muito tempo ainda até o embarque, ele então propôs uma brincadeira para as crianças, que achou ser inofensiva.Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore. Aí, ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro. As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!", instantaneamente, todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore como cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e os comerem felizes.O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou por que elas tinham ido todas juntas, se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces. Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?" Ele ficou pasmo. Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo e ainda não havia compreendido, de verdade, a essência daquele povo... Ou jamais teria proposto uma competição, certo?
Muitas vezes trabalhamos em cima de uma ideia ou de uma convicção tão obsessivamente, para "ajudar" aqueles que consideramos "carentes" ou para mudar os "inferiores" e não percebemos que eles têm o mesmo valor que nós. E até nos surpreendem, muitas vezes, com seu sentido ético e sua maneira de se relacionarem. Falta ainda um pouco mais de tempo para compreendermos que não existe tal coisa como uma hierarquia cultural, ou seja, expressões culturais boas e más, certas ou erradas. Na ação de cada gesto ou na consideração que fazemos do “outro,” só conseguimos olhar para o próprio umbigo e frequentemente nos vermos como modelo e referencial. Olhamos as outras manifestações culturais, outros valores, outras práticas sociais pelo nosso prisma, com os valores da nossa cultura. A isso a Sociologia e a Psicologia chamam de "etnocentrismo". Ubuntu significa: Sou quem sou, por quem somos todos nós.
Tantas são as lições nessa simples estória que valeria a pena falar um pouco sobre algumas delas. Primeira e mais óbvia, é o nosso sentimento de superioridade cultural, claro. Achamos que nossas sociedades industrializadas são o auge da civilização, o topo da escala evolutiva do homem. Sabemos que estas teorias hoje já não valem nada. Tribos indígenas e africanas, por exemplo, são tão bem sucedidas quanto as ditas civilizadas.
Segunda, a brincadeira que o antropólogo fez com as crianças mostrou um exemplo do que é nossa sociedade, em comparação com as consideradas "primitivas": somos egoístas; mesquinhos; competitivos no pior sentido da palavra; estimulamos a má rivalidade, e não a rivalidade criativa; a ganância; a "corrida ao pote de ouro", enquanto que as sociedades tribais — sem ter aqui a menor visão romântica das coisas — são cooperativas, solidárias, igualitárias na maior parte do tempo.
Até a pessoa mais distraída já deve ter percebido a razão dessa diferença: as tribos ditas "primitivas" não praticam o capitalismo.
Terceira, é bom chamar a atenção para um detalhe no texto: a ideia de ajudar os carentes. É o seguinte: o rico, a socialite, frequentadores dos altos círculos sociais, de alguma forma (geralmente de maneira não muito lícita) conseguem acumular muito mais do que precisam ou conseguiriam gastar. Pra ficar bem na foto perante a sociedade, aparecem fazendo caridade ao lado dos pobres, fazendo doações, trabalhando com voluntariado, filantropia... Esse paliativo serve muito mais para a imagem pessoal deles, do que para resolver o verdadeiro problema no seu cerne, que é: não deveria haver pessoas com tanto e outras com tão pouco. E antes que venham aqui dizer aquelas explicações de sempre, isso não tem absolutamente nada a ver com o talento ou o trabalho pessoal de cada um. Isso tem a ver com pertencer ou não pertencer a determinado meio, onde as oportunidades sempre aparecem, porque seu pai conhece o dono da empresa tal, que é casado com a mulher do desembargador tal, que por sua vez é sócia do engenheiro tal... De modos que as portas sempre se abrem facilmente para este grupo. São estas lições que devem ser aprendidas, para que a gente possa tirar a venda dos olhos e enxergar a nossa sociedade tal como ela é.

CAMILO MORTÁGUA
ANDANÇAS PARA A LIBERDADE, VOL II 1961-1974, Ed. Esfera do Caos, 2013

Jacinto Rodrigues
30.10.2013 Apresentação do livro no Porto – UNICEPE







Esta apresentação, que aqui deixo escrita, sobre o livro do amigo e companheiro Camilo Mortágua, é a continuação do texto que fiz sobre o 1º volume das Andanças que trata do período entre 1934 a 1961.
Trata-se do resumo do livro, tal como o selecionei, mas quis dar a “verbe” pessoal da narrativa ao autor e daí as longas citações.
Não é nem um estudo literário nem uma crítica histórica. É, antes de mais, uma ficha de leitura que utiliza retalhos da história de vida, escrita pelo seu próprio autor. É assim um resumo descritivo.
Pretendo, com este texto, fazer uma apresentação de cerca de meia hora como se tratasse de um clube de leitura dos meus tempos de juventude, em que um dos participantes fazia o resumo dum livro e a partir daí desenvolvia-se um debate. Isto era, naqueles tempos do fascismo, uma maneira de improvisarmos uma “catedral proletária”, conceito que no séc. XIX, nos meios operários, veio a gerar as conhecidas universidades populares.
Este livro do Mortágua, história de vida e história de ensino, tem a singularidade de ser um extraordinário documento para o entendimento da luta antifascista.
E, para melhor saborear este texto vivido, é necessário ouvir o testemunho direto do seu autor. A sua escrita, tão rica de imagens e de oralidade, torna esta prosa imprescindível para compreender a profundidade de uma experiência de vida, de suor e de lágrimas mas também de humor, coragem e amor que aqui vamos conhecer.
  Na recensão sobre o primeiro volume escrevi que, por detrás da linguagem coloquial e espontânea de Camilo Mortágua, a oralidade presente na sua narrativa surpreendia pela profundidade que ela revelava.
Camilo Mortágua usa uma metodologia perspicaz que lhe permite um alargamento da consciência a que Platão se refere num dos seus diálogos filosóficos. Assim como Platão pretende chegar à consciência pela capacidade de distanciamento do instinto, das emoções e da inteligência com o socorro dessas três componentes antropológicas do “Eu”, Camilo Mortágua utiliza os três elementos que constituem o que ele designa por “CAAC” (Coletivo de Auto Análise Comportamental) e que se refere aos seus três heterónimos que lhe permitem uma tomada de consciência mais ampla e reflexiva: “Come e Cala”, o “Batata” e “Zé Ninguém”.
Para obter esta consciência mais ampla e reflexiva, Camilo Mortágua escuta a vivência integral do seu ser: o instinto, as emoções e a inteligência, obtendo assim olhares diversificados para ver e prever as situações. Procura explicar a sua própria viagem. Assim, tal como Platão na sua metáfora sobre a articulação complementar do “coche”, dos “cavalos”, do “cocheiro” e do “rei”, também Camilo Mortágua sabe que para uma maior consciência é necessário dialogar com os vários heterónimos que constituem a sua própria personalidade complexa. 
A comparação metafórica de Platão é a seguinte:
1.      O “coche”, instinto, é o corpo mecânico em que cada um de nós se desloca;
2.      Os “cavalos” são as emoções, força viva dos afetos contraditórios e temperamentos desiguais que marcham nestes animais atrelados ao veículo;
3.      O “cocheiro”, inteligência intelectual, harmoniza as funções múltiplas do “coche”, dos “cavalos” e dos “arreios” (rédea e chicote) próprias da sua competência.
4.      O “rei”, que se encontra dentro do veículo, é o “eu superior” ou seja, a consciência reflexiva que ilumina a marcha e dá sentido à viagem a fazer.   

Este segundo volume começa em 1961. “1961 O Ano Que Mudou Portugal” como escreveu João Céu e Silva é também o ano em que uma grande mudança se operou em Camilo Mortágua.
“29 de Janeiro de 1961”, como escreve Camilo Mortágua, “era um domingo luminoso. Um fim de tarde cinematográfico.” Como se pode ver, esta escrita transporta os factos históricos para um cenário real que nos surge agora como uma espécie de filme de suspense.
A força das imagens, a sedução encantatória dos ambientes e a ação permanente deste enredo vivenciado, transforma-nos a nós em personagens do próprio filme dos acontecimentos.

“…num mar calmo azul celeste, pintalgado de faíscas de branca espuma, um ou outro pássaro esvoaçando em busca de abrigo para a noite, o Santa Liberdade, a baloiçar muito docemente, quase tão quieto como se estivesse ancorado no cais de Alcântara, quieto mas livre, em águas internacionais, uma meia centena de milhas ao largo do Recife.
Reunidos à proa num canto do deck superior (eu e os inseparáveis companheiros do meu “coletivo de auto análise comportamental” – CAAC) desfrutávamos da leve brisa que até nós trazia os acordes e as palavras da canção que amenizou os nossos dias de incertezas e encantou os animados bailes deste que foi, para a maioria dos passageiros, um inesperado e emocionante cruzeiro e, para os mais românticos e ousados, apesar do imprevisto, uma inesquecível viagem no barco do amor.” (MORTÁGUA, 2013, 21)  

É neste contexto que o embevecido poeta Camilo Mortágua desperta ao som do “Samba canção” de Dolores Duran que ouvia do grande salão onde decorria o animado baile: “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier para enfrentar a noite do meu bem”.
Essa tomada de consciência surge rapidamente. Retomado o triálogo do coletivo de auto análise comportamental, a narrativa vai transformando esta história de vida cada vez mais empenhada na ação política do assalto ao Santa Maria. Esta operação de primeiro plano na panorâmica histórica é-nos apresentada com um contexto das chefias desta espantosa operação revolucionária, pioneira na história da revolução – a tomada de um barco.
Galvão respondia pelos portugueses e, pelos espanhóis, respondiam os Sottomayor e o Junquera de Ambia. Em seguida assistimos às visitas que chegam para observar e divulgar o sucesso da operação.
Os americanos chegam no “monstro cinzento com grandes números pintados de branco.” Era um submarino da esquadra americana com o contra-almirante Smith, representante do Presidente Kennedy. Vinha entabular conversa com o chefe Galvão, “Sandokan das Caraíbas” como lhe chamara uma senhora americana que viajava a bordo do Santa Maria.
Depois, Camilo relata ainda o nome dos comandos que tomaram o Santa Maria e traça-lhes o perfil profissional, analisa diferenças pertinentes nas chefias e tem tempo para narrar a lírica história de um amor entre uma jovem de 18 anos, a Magda, que pretendia ficar com o seu namorado, um dos companheiros do grupo de Camilo Mortágua, já depois do desfecho da operação. Prestimoso e elegante, Camilo Mortágua aconselha-a a partir, juntando-se assim aos outros passageiros que desembarcaram.
A atmosfera romântica finaliza esta epopeia do barco Santa Maria e Santa Liberdade com a citação de Natália Correia que chamou ao Santa Maria “pedaço da terra transportuguesa, longo símbolo e prenúncio da libertação do seu povo”.
A nostalgia saudosista percorre também a comoção de Camilo Mortágua a 3 de Fevereiro de 1961, quando disseram adeus ao Santa Maria.

“Naquela hora, pareceu-me um barco triste. Já não era aquele Santa Maria que entrara no porto do Recife adentro engalanado de brilhantes luzes e bandeirinhas coloridas.” (Idem, pág. 34)

            Esse tempo no Brasil teve festa e regozijos. Os homens do Santa Maria eram disputados por toda a gente. Bailes e galas carnavalescas do Rio fizeram deste período um tempo de felicidade.
            Porém, as andanças para a liberdade são feitas de claro e escuro, de sobressaltos e euforias. Por isso veio também o lado cinzento das revoluções. A narrativa desta audaciosa e prometaica operação dá lugar à soturnidade da noite, das quezílias e das traições. As divergências pessoais entre os exilados Galvão e Delgado são aqui relatadas. É com uma elegância acutilante que ele descreve essa situação. É um pano de fundo histórico que ensina a amadurecer, a conhecer homens e situações. E é assim que ele vai descrevendo a sua própria transformação. Por isso, este livro é também uma história de vida que é história de ensino para si próprio e para nós leitores. E, na monotonia triste daqueles dias, vai surgir a presença de Palma Inácio que lhe proporciona uma nova etapa na sua vida.
            Segue-se então a viagem para Marrocos. Chegados aqui, fixam-se em Tânger. A casa é perto do Café Zagora onde a PIDE e seus acólitos rondam e observam o paradeiro dos revolucionários que se preparam para uma nova operação. Entre confusões e indecisões Palma Inácio revela o grito do canto do homem de José Régio que Mortágua cita:

“Livre não sou, que nem a própria vida mo consente, mas a minha aguerrida teimosia é quebrar, no dia-a-dia um grilhão da corrente” (Idem, pág. 73)

            Foi decidido o novo plano da batalha, que Henrique Galvão denominou a operação “Vagô” escrevendo também o famoso panfleto que vai ser lançado de avião sobre Lisboa. A cena da tomada do avião que iria sobrevoar Lisboa é digna dum filme de ação. Depois de várias peripécias com pistolas e passaportes no aeroporto de Tânger, entram num “superconstelation” da TAP.

“Quando o Palma deu sinal, levantou-se e dirigiu-se para a cabine de pilotagem. Segui-o. Entramos os dois. Atrás de nós Amândio e os outros companheiros posicionaram-se para impedir o acesso à cabine.
Meus senhores, muito bom dia, diz o Palma, em nome do Capitão Henrique Galvão queremos alterar o plano deste voo. Ou obedecem e tudo se passará normalmente, ou cedem-me o comando, obrigados pela força das nossas armas. Espero que a vossa colaboração seja pronta e sem hesitações.
Tínhamos fechado a porta da cabine atrás de nós e o Palma, de arma em punho, num tom muito calmo, de pé, olhando de cima para baixo, tinha-se dirigido ao Comandante e Auxiliares, sentados de costas para nós, nos seus respetivos postos.” (Idem, p.

            Esta operação permitiu uma ação de larga propaganda que muito contribuiu para o reforço do antifascismo. Os panfletos lançados sobre Lisboa foram, como diz o Mortágua, foguetes a anunciar o princípio do fim da era do ditador Salazar e o princípio da tão desejada era democrática.
            Regressam então novamente a Marrocos e depois, num compasso de espera, aguardam de novo o retorno ao Brasil. Camilo conta as dificuldades que vão sofrer com os vistos e as burocracias, revelando assim os compromissos da política internacional com Salazar. Nesta contenda sobressai a figura de Henrique Galvão que Camilo Mortágua reverencia. Contrariando a maior parte das posições assumidas por outros democratas, Camilo Mortágua considera Galvão como um consequente combatente e também um esforçado anticolonialista. A carta que Henrique Galvão escreveu a Camilo Mortágua revela realmente um dirigente bastante consciente das problemáticas tortuosas do processo revolucionário.
            De 1965 a 1967 uma nova etapa se vai desenrolar na notável peripécia que é a sua vida. Parte para França vindo do Brasil. Aí refere o contexto da vida dos exilados com as suas fações, o seu lado escuro e luminoso. Relata duma forma realista a vida dura dos emigrantes, as misérias e alegrias contadas com uma inaudita capacidade narrativa, com comoção, nostalgia e compreensão humanista.
No meio de alguma agrura vai surgir de novo, na vida de Camilo Mortágua, como se de um paradigma luminoso se tratasse, a figura heroica de Palma Inácio. Juntam-se também Luís Benvindo e António Barracosa.
Realiza-se então a portentosa operação da Figueira da Foz relatada por Camilo Mortágua de forma épica e cheia de humor. Trata-se duma empresa de génio, de audácia e virtuosismo, duma iniciativa que vai permitir autosustentar um processo revolucionário através duma ação exemplar.
Camilo Mortágua resume assim a ideia: “A audácia torna o impensável possível.”
Esta operação foi um ato com contratempos, temores mas também riscos e audaciosas soluções. A sorte e o azar, o contexto envolvente e a iniciativa pessoal metamorfoseiam-se. E assim, os revezes da situação são por vezes promissoras “chances” de vitória. Este grupo revolucionário experimenta esta alquimia de transformar o negativo em positivo.

“ Se bem me recordo a nossa entrada no banco não teve nada a ver com aquelas cenas que se vêem nos filmes. Cara destapada, trajados normalmente, entramos como o faziam os clientes normais. Palma, eu, Barracosa e Benvindo, não sei se exatamente por esta ordem, uma vez colocados nas posições previamente combinadas, ficando um de guarda à porta para não deixar ninguém sair, mas permitir a entrada a quem quisesse entrar. O Palma anunciou ao que íamos e precisou a natureza política do ato, convidando os responsáveis a abrir imediatamente a casa forte …
Um dos gerentes, com um sorriso nos lábios disse: Não se pode abrir a casa forte porque falta uma pessoa que está ausente. São precisas três chaves e de momento só cá estão duas… Após um ligeiro parpadear coletivo, o Palma, com um ar tranquilo respondeu: Não faz mal, nós esperamos!
E esperamos aproximadamente 15 minutos em tempo real. Todo o tempo do mundo para quem o viveu, ou pelo menos o tempo suficiente para fazer minuciosa revisão do vivido e uma resignada perspetivação muito incerta do futuro imediato. Coisa insólita, o meu “caco” manteve-se absolutamente mudo e quedo, cada um tratando de cumprir com a maior concentração possível a missão que lhe estava destinada. Ao Palma e ao Barracosa competia-lhes manter os gerentes na ordem desejada e entrar dentro da casa forte, ensacar a mercadoria e entregar a cada um de nós um saco (apesar das inúmeras análises feitas durante a preparação, persistiam grandes dúvidas sobre o volume e o peso do “papel”); ao Benvindo, assegurar que quem se apresentasse à porta tinha de entrar e ninguém podia sair. A mim, a função de fechar na casa de banho quem entrasse e olhar atentamente para o conjunto.
Quando a terceira chave chegou com o gerente ausente, quem mais respirou de alívio foram os próprios funcionários do Banco. Posto ao corrente da situação, lá se convenceu que não tinha alternativa e a pesada porta do “tesouro” foi escancarada… Feita a “limpeza”, o Palma voltou a falar. Depois de voltar a insistir na natureza política do assalto e de felicitar todos os presentes pelo seu comportamento responsável que em muito ajudaria a causa da liberdade do nosso Povo, recomendou-lhes o seguinte: “As nossas vidas vão ficar dependentes do vosso comportamento nas próximas duas horas. As nossas mas também as vossas e a dos vossos filhos que neste momento são acompanhados por companheiros nossos. Mantenham-se quietos e dentro do Banco, sem qualquer tentativa de alarme. E assim tudo correrá bem para todos. O primeiro que ultrapassar a porta de saída, durante as próximas duas horas corre risco de vida. Não arrisquem a vossa vida pela ditadura”. 
Cada um com a sua carga ao ombro, um de cada vez, lá fomos saindo da” mercearia” com os nossos “sacos de batatas”. Passada a porta, dobrando à esquerda, e percorrendo os tais trinta passos pelo passeio até ao carro que nos esperava depois da esquina, saudando pelo caminho o polícia de segurança com quem nos cruzávamos, a andar para cá e para lá na sua rotina de todos os dias… O Ângelo Cardoso aguardava sentado no banco de trás do carro para abrir portas e dar rápida entrada ao Benvindo, condutor designado para o percurso até o aeródromo de Cernache. Com os cinco instalados e a mercadoria acondicionada na ampla bagageira, partimos por volta das 15h30.
Observando à nossa volta, nada se tinha passado de anormal. Comecei a acreditar que nos safaríamos daquela. Passados uns dez minutos, numa curva da estrada, com densa vegetação, a uns dez quilómetros da partida o Cardoso disse: “É aqui.” Com a viatura ainda em andamento saltou para a berma da estrada e atrás dele foi um saco, saco do qual mal podíamos ter adivinhado que alguns meses mais tarde, viriam a esvoaçar “ao vento que passa” pela reta de Mira e em outros pontos do País, como passarinhos enviados do céu, bilhetes de conto de reis! Consequências de andanças outras, que por serem essencialmente alheias, a memória não pode registar.
Sem percalços, chegamos ao aeródromo de Cernache. Ali paramos o carro perto da avioneta e o Palma dirigiu-se ao guarda que já conhecia de anteriores visitas. Acompanhando pediu para encher o depósito, enquanto nós esperávamos um pouco distantes do hangar que servia de residência ao guarda e sua família.
Como não havia tempo a perder, perante a sua estranheza pela nossa atitude algo nervosa e inquieta, logo ali se explicou do que se tratava. Para lhe evitar complicações futuras o melhor seria ele e a mulher deixarem-se amarrar, para ficarem quietos o tempo suficiente até chegarmos ao nosso destino que evidentemente não dissemos qual era.
Sentaram-se em duas cadeiras às quais foram “atados”. Coube-me a mim “prender” a senhora, coisa que jamais tinha feito. A situação complicou-se quando o bebé começou a chorar. Então… vá lá… não se enerve, quer ver? Chegamos a cadeirinha do bebé para a senhora e deixamos-lhe um braço livre para lhe poder dar o biberão. Assim podiam ficar sossegados…
Quando o “desvio” da avioneta foi conhecido e a polícia ligou o caso ao assalto ao Banco, se a memória não me falta lá por volta das 7h da tarde, já o “passarinho tinha poisado” numa larga pista improvisada acabada de rasgar para mais uma urbanização turística algarvia em Vila do Bispo, não muito longe de Sagres, lugar cimeiro da preparação de outras e mais importantes andanças dos portugueses.” (Idem, pp.174, 175).

A dupla, Palma Inácio e Camilo Mortágua, revelava-se complementar. O pragmatismo e a vivência rural davam a Camilo Mortágua uma sabedoria que corrigia e agilizava a competência, a coragem e a destreza de Palma Inácio.
Diríamos estar face a um tipo “pícnico”, à Sancho Pança, o Camilo Mortágua e a um tipo mais “esquizotímico”, à D. Quixote, o Palma Inácio.
Essas polaridades temperamentais vão manifestar-se quando, de regresso a Paris, Palma Inácio e Camilo Mortágua contactam de novo os históricos democratas. Porém, Camilo Mortágua considerava Emídio Guerreiro como um velho tartufo enquanto Palma Inácio se deixava impressionar pelo passado e pela prosápia do político burguês.
No entanto, Mortágua, apesar das diferenças entre ambos nunca abdicou da sua fidedigna amizade a Palma Inácio.

“O Palma, meu companheiro por ponderada opção mútua, minha força de “frape”, minha garantia da possibilidade de se fazer aquilo que se pensasse, meu comandante e nosso eficaz executante, homem inteiro e por isso teimoso à sua maneira, de poucas palavras, serenamente determinado, capaz de compreender muito mais do que dava a entender, incorruptível no seu amor à vida e às liberdade, avesso a proibições e práticas redutoras das liberdades individuais, amante dos prazeres da vida, apreciando a liberdade como o maior deles; configurador absoluto do modelo das suas relações humanas e amorosas; nada adiantava pretender corrigir-lhe os defeitos.” (Idem, p.186)

Nasce então a “LUAR” que inicia esta relação matricial com o enfeudamento ao “famigerado conselho superior” constituído por “líderes políticos da velha guarda”.
E assim, como diz Mortágua, “esses oportunistas de gabarito, viam-se já líderes duma organização revolucionária, protagonistas da história do combate contra a ditadura, sem para isso terem mexido uma palha.”
Por isso o Conselho Superior tutelou, daí em diante, a vida da LUAR. Essa tutela compreendia, bem entendido, a gestão dos dinheiros conseguidos na operação Mondego – Figueira da Foz – que se revelara uma árdua e arriscada operação.
Com este contexto, “o bando dos 4” (Mortágua, Palma, Barracos e Benvindo) retoma o ímpeto revolucionário que os animava e no portentoso ano de 1968, planeiam e organizam a operação do assalto à Covilhã. O projeto e a organização desta operação, a tomada da cidade da Covilhã por algumas horas, revelou diferentes conceções e sensibilidades, em particular a postura de Hipólito dos Santos, referenciada no seu livro “Felizmente Houve a LUAR” e de Camilo Mortágua.
Camilo escreverá:

“Discordei, não porque a ação me parecesse politicamente incorreta ou mal pensada mas simplesmente porque em meu entender era demasiado exigente para os meios e recursos de que dispúnhamos. Quando, pela primeira vez estávamos na posse de um lote razoável de armamento, quando o nº de adesões crescia rapidamente e exigia enquadramento apropriado, quando se iniciava pela primeira vez a criação e bases de apoio no interior do País, arriscar tudo numa só ação parecia-me um autêntico suicídio. Como quem continuava a assegurar os contactos com o Guerreiro era o Palma e os recursos eram arrancados a conta-gotas, entendi e disse-o na altura, que as boas regras da condução da luta aconselhavam a nunca arriscar tudo o que se tem numa só ação, porque a exiguidade de meios aumentava os riscos, e, no caso de falhar, o processo sofreria um retrocesso difícil de recuperar. Se mantivessem a decisão estava disposto a colaborar em tudo o que me fosse solicitado, mas não contassem comigo para participar diretamente.
Esta decisão comunicada ao Palma e em conversa a sós, a seu pedido, não foi divulgada para não dificultar o recrutamento dos operacionais necessários.
O bom senso não imperou, a decisão do assalto à Covilhã foi mantida ocasionando o desastre que só a fuga do Palma veio, ano e meio depois, permitir dar continuidade à luta, abrindo uma outra fase, completamente diferente das anteriores, com novos militantes operacionalmente identificados com os métodos do Palma, na maioria jovens irreverentes e destemidos, sem contudo conseguir novos sucessos politicamente úteis. Acompanhei à distância os preparativos da ação e dispus-me a deslocar-me até à fronteira franco-espanhola para, a partir daí poder prestar o apoio à retirada que me foi solicitado…
Por este desastre, são responsáveis o Palma, por não ter compreendido que a sua autoconfiança tinha limites e a operação requeria meios de que não dispúnhamos e capacidades coletivas de decisão e ação que ele sozinho não podia resolver. Mas mais responsável a meus olhos, o padrinho Guerreiro por negar os meios necessários ao alcance de tão importante objetivo.” (Idem, pp. 201 a 203)

Este desastre, de que fala Camilo Mortágua, levou à prisão de muitos companheiros, embora alguns tivessem conseguido escapar.
Perante esse desastre Mortágua não perde a capacidade de assumir novas responsabilidades. Procura apoio para os operacionais que restaram dessa ação falhada. A “Caparica”, porto de abrigo revolucionário da LUAR, era uma quinta nos Pirinéus Orientais que o seu amigo Silva Martins lhe arranjara para poder encontrar sustentabilidade aos companheiros com mais dificuldades de integração no exílio, prosseguindo assim com a formação do grupo de resistência.
Neste porto de abrigo dos Pirinéus o treino não era igual ao que se fazia, anos antes, no Brasil e que jocosamente Camilo Mortágua relata neste seu livro com o título “Matando a galinha”. Nesse capítulo, Mortágua e os companheiros iam treinar para os lados de Niterói, com sacos cama, cordame para armar abrigo à cubana e fogões de campismo. Eram fins-de-semana em que se obtinham batatas-doces e galinhas gordas que tentavam alvejar a tiro.
Na Caparica o pessoal alojava-se na quinta “daqueles neo-rurais idealistas do retorno à terra”. Os donos viviam austeramente criando cabras e vivendo do produto da quinta. Comiam-se cogumelos dos bosques vizinhos. E a formação era submetida à disciplina da sobrevivência.
Entretanto, com a própria experiência de Mortágua num kibutz de Israel, quando aí esteve durante algum tempo, despertara-lhe o seu gosto rural da infância.
O trabalho de sobrevivência e a nova aprendizagem de vida concreta obrigam o pessoal a adaptar-se aos condicionalismos. Porém, não demorou muito tempo para que a situação mostrasse a fragilidade desta opção. A dificuldade em manter o sigilo necessário e a facilidade de integração na vida comum da sociedade francesa, aceleraram a procura de outras alternativas para o grupo português que acabou por largar essa Tebaida “pouco adaptada para pessoas ilegais ou manifestamente inadaptadas para suportar a tensão de um tal contexto”.
A breve prazo dar-se-ia, em Portugal, a fuga de Palma Inácio da prisão.     
A ausência irreparável de Palma Inácio, que foi preso, só viria a ser superada quando em 8 de Maio de 1969 fugiu das instalações da PIDE, no Porto, onde estava detido.

“O grande general de si próprio tinha ganho mais uma batalha. Cerrando as grades da prisão, quebrando mais um grilhão da sua corrente. O seu feito dava-nos novo alento e novas responsabilidades e tarefas… (Idem, pág. 312)

O romantismo e a coragem indomável de Palma Inácio levam-no de novo para o comando da ação direta da revolução inacabada. Mas também, diante do desespero deste seu fiel companheiro, Mortágua descreve a sua premonitória intuição dum outro desastre que se avizinha. Muitas conversas se estabeleceram entre Mortágua e Palma Inácio. Pairava na mente de Mortágua a prudência e a cautela em torno do infiltrado Castelo Branco, o “canário”, que não lhe inspirava confiança. Essa desconfiança sobre Castelo Branco era também partilhada pelo “Azevedo” (Hipólito dos Santos) que descreve essa questão no livro já citado.
Contudo, Palma Inácio desvalorizava os erros cometidos e sobretudo queria desesperadamente continuar uma luta que estava por terminar. Escreve então Mortágua:


“Depois de lhe apresentar frontalmente as minhas reservas quanto à possibilidade de ser possível continuar sem outra disciplina organizativa, concordou comigo, mas era evidente que concordava para não ter de aprofundar uma conversa que o aborrecia. No final, sem grande insistência da minha parte, concordou com a minha proposta: “Sempre que precisasse de mim para o apoiar a ele ou à LUAR, ficava à disposição, demitia-me de todas as responsabilidades de direção e só não aceitaria participar diretamente e automaticamente em ações sem prévia discussão das mesmas.”
Compreendeu perfeitamente o alcance do acordo e nunca mais me falou de planos operacionais. Víamo-nos uma ou duas vezes por semana, pedia aquilo que necessitava e que eu podia fazer no âmbito da papelada, falávamos de tudo e do bom tempo, sabendo ele que eu sabia da evolução das ações da LUAR sem nunca abordarmos diretamente o sujeito.
A última observação que lhe fiz na altura, continuava de pé: “No dia em que sinceramente estejas disposto a funcionar dentro de um esquema organizativo com responsabilidades coletivas e individuais bem definidas, diz-me e conta comigo.” (Idem, pág. 217).   

Qual cavaleiro andante imbuído pelos seus ideais, Palma Inácio será novamente preso. Nostálgico e triste na sua solidão ao ver partir o amigo, Camilo Mortágua prevê mais uma batalha desfavorável. Mas novo sol brilhará. Veio finalmente o 25 de Abril de 1974 e foi a festa do regresso.

“Chegamos a vilar Formoso por volta da meia-noite do dia 30 de Abril e a Lisboa ao romper da mais bela aurora da minha vida. Da minha e, certamente de todos os que encheram as estradas da Europa a caminho da pátria em festa de todas as organizações de todos os comités. Trotskistas, maoistas, comunistas de todas as tendências e inspirações, cruzavam-se, saudavam-se, abraçavam-se como nunca tinham feito.
Entramos no posto de controlo da fronteira, vários ao mesmo tempo, em festa, já esquecidos das tremuras, sustos e angústias “de ontem”, olhando os guardas como quem diz, vêem… somos diferentes, estão perdoados.
Os carros buzinavam, cada grupo cantando livremente a sua canção, as canções que tinham animado os tempos da longa e sofrida espera.” (Idem, pág. 219)

À laia de conclusão deste segundo volume de Camilo Mortágua, aguardamos a narração do terceiro volume que importa para completar as memórias da extraordinária aventura do 25 de Abril, história de esperanças, cravos e gaivotas esvoaçando no céu azul de Portugal. História também feita de mudanças. E agora, com esta ameaça cinzenta dum quotidiano com Troikas e FMIs onde já se ouvem, felizmente, as vozes que vêm de longe, como as de Camilo Mortágua e que incitam a continuar a luta, podemos concluir que só persistindo é que se pode vencer.
Sem temor excessivo nem exaltação incauta, Camilo Mortágua é o exemplo do lutador que soube fazer do seu espírito crítico, da sua modéstia e das suas tenazes convicções, a força consciente que proporciona a verdadeira coragem para a revolução.
O percurso que Camilo Mortágua nos deixa nestes dois volumes das suas andanças, mostra como na sua aprendizagem de vida, de revoltado se tornou revolucionário.   





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2013 - Reconhecimento histórico da ação revolucionária da LUAR na luta contra a ditadura salazarista

(Para aceder ao memorial Palma Inácio no facebook basta clicar no título acima)

EM MEMÓRIA DA ESPECTACULAR FUGA DE PALMA INÁCIO

(Porto, 7 para 8 de Maio de 1969)

PIDE OFERECE 50 MIL ESCUDOS POR INFORMAÇÃO DO SEU PARADEIRO 


No Plenário do Porto
"Nove acusados de pertencerem à organização L.U.A.R. (Liga de União e de Acção Revolucionária), presos em Agosto do ano findo, quando entravam clandestinamente pela fronteira do Nordeste transmontano, acabaram de ser julgados no Plenário do Porto.
(…)
Faltou o réu principal, Hermínio da Palma Inácio, de 47 anos, industrial de reparação de aviões, residente em Paris, que, como se sabe já, se evadiu das prisões da Polícia Internacional e de Defesa do Estado."
Diário de Lisboa, 8/5/1969

Dando voz ao desejo, tantas vezes expresso dos amigos e admiradores de Hermínio da Palma Inácio, um grupo de antigos companheiros resolveu avançar com o projecto de edificação dum monumento comemorativo da sua fuga, no Largo Soares dos Reis, no Porto.
O projecto, cuja fotomontagem enviamos em anexo, já foi aprovado pela Câmara Municipal do Porto e é da autoria do escultor Joaquim Álvares de Sousa.
Nos tempos que correm, homenagear e relembrar a coragem de PALMA INÁCIO é um pequeno nada nas nossas vidas, que pode ser uma muito grande ajuda para o nosso ânimo colectivo.
Para poder levar a bom termo este propósito, teremos de juntar, até finais de Março, uma quantia próxima dos quinze mil euros e necessitamos da contribuição de todos.
Graças à solidariedade sempre manifestada por todos quantos se sentiram orgulhosos do seu exemplo e agradecidos pelo seu combate pela nossa libertação, confiamos no sucesso desta iniciativa. E, como há verbas que têm de ser disponibilizadas de imediato, apelamos a que nos façam chegar o mais rápido possível a vossa contribuição.
Assim:
1. Para o efeito, existe uma conta com o nº 0214025424200, aberta na Caixa Geral de Depósitos, NIB 003502140002542420072, IBAN PT50003502140002542420072 e BIC CGDIPTPL, que servirá exclusivamente para este fim e de cujo movimento será dado conhecimento detalhado, à medida que as contribuições forem chegando, a todos os que contribuam e o desejem.
2. Agradecemos que cada contribuição/transferência seja confirmada para este e-mail: memorial.palma.inacio@gmail.com
3. A contribuição pode ser feita em fracções, cujos prazos de entrega deverão ser inicialmente programados por um prazo que não deve ir além do fim de Março de 2013.
4. A inauguração do referido memorial está prevista para 8 de Maio de 2013.
Certos da vossa resposta a este apelo, recebam as nossas saudações democráticas e sempre solidárias.
Para qualquer contacto:
Maria Elisabete Neves
Telemóvel: 911 082 328
AMIGO!
NÃO DEIXES PARA AMANHÃ O TEU CONTRIBUTO!
E divulga pelos teus amigos!
CONTA DA CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS:
Nº da Conta – 0214025424200
NIB – 003502140002542420072
IBAN – PT50003502140002542420072 e BIC – CGDIPTLP (No estrangeiro)



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A propósito do livro de Camilo Mortágua, Andanças para a Liberdade vol. I, 1934-1961, Lisboa, Ed. Esfera do Caos, 2009


Jacinto Rodrigues

Andanças para a Liberdade é uma autobiografia de Camilo Mortágua, contada como uma história de vida, sobre a vida exemplar de um resistente, contra a ditadura. É a história de um homem simples e simultaneamente a história de um filósofo cuja sabedoria popular o torna um precioso livro de ensino.
            É a memóra de um resistente anti-fascista, saído do povo rural deste país, que foi caixeiro, padeiro, agricultor, camponês e aventureiro revolucionário.
            Neste primeiro volume, Camilo narra-nos a sua história de vida desde o “Camilinho come e cala”, nascido em terras de Estarreja até à aventurosa experiência revolucionária do assalto ao navio Santa Maria, em 21 de Janeiro de 1961.
            Aguardamos com a maior expectativa o segundo volume, no prelo, que nos relatará a aventura de Camilo Mortágua nos anos de luta anti-fascista até à revolução de Abril.
            O 1º volume das Andanças é uma prodigiosa narração de um contista nato onde a oralidade do discurso surpreende pela profundidade, nos faz rir sem deixar de refletir, nos entusiasma e comove em permanente olhar novo.´
            É que Camilo Mortágua usa uma narrativa construída em discurso plural, com níveis diferenciados mas interligados, da sua consciência feita de “personas” desiguais. O distanciamente reflexivo, o desassossego e a vontade de viver dão à sua vida uma frescura poética, um encantamento permanente na procura da pilotagem constante de auto-desenvolvimento feito de permamente exame de consciência a que ele chama o coletivo de auto-análise comportamental, CAAC. Trata-se aqui duma ironia subtil com que resolveu, heteronomicamente, o olhar polivalente, filosofando diante da vida entre contradições múltiplas, destino feito de necessidades e sempre com liberdade de escolhas. Este livro tem uma escrita original, lírica e por vezes hilariante que nos ajuda a percebermo-nos a nós próprios com ironia, distanciamento e humor.
            Esta metodologia faz parte do universo específico das chamadas literaturas de formação mas que aqui, sem pretensões ideológicas e excessivamente didáticas, percorre o fio da vida na esponeidade e sorriso permanente do autor. A vida, assim, é uma vida vivida sempre prenhe de futuro, coada pelas três principais personagens que constituem a sua personalidade forte e coerente.
O “come e cala” é a criança que se plasma na vida imposta pela envolvente social, O “batata”é a “persona” que cria dispositibos de acomodação. E o Zé Ninguém, composto por complexidades e mútua reflexão permanente entre o Pé Ligeiro, o Zé e o Camilo Mortágua.
Esta é a metodologia simplificada que se revela na procura de auto-aprendizagem, no “ver” para além das aparências, no ressentir “dentro e fora” a realidade que vai surgindo, envolvida em sensações emoções e intuições.
A história da sua infância é feita de encantamentos poéticos em que o “camilinho” vai usufruindo o aconchego dos brancos panos de linho que o acomodam  na canastra de pão em que sua mãe transporta os pão das padarias de Ul, levando à cabeça, a caminho de S. João, a caminho de Macinhata, da Feira ou de Arrifana.
Depois das andanças várias da sua vida, o “come e cala” vai crescendo tornando-se também no “batata” ao longo da vida complexa que vai vivendo. Aprende o valor da vida por entre as terras baixas, irrigadas e drenadas pelos canais dos ribeiros e rios desde Antuã ao Vouga.
Percurso dos grãos que vêm dos celeiros até aos moínhos de água. Os esteiros, os barcos com decorações mulicolores e os moliceiros dão à paisagem de “aguas largas”, a inesquecível marca de aventuras... A escola decorria ligada à vida das fainas. Fainas do campo e do mar nas redondezas. Terras de Estarreja a Murtosa, de Salver até Avanca.
Apanham-se búzios de pescadores molicieiros, comem-se enguias de caldeirada.
No capítulo II, Mortágua continua com a escrita de aprendizagens: o distanciamento no acompanhamento de si próprio na 3ª pessoa vai aprofundando a refledçao adolescente. E a doença assim como a relação com os amigos vão-lhe maturando a consciência. Assim, o Senhor Constantino, que nunca falava de si, trazia-lhe perguntas que lhe alargavam a consciência. O Sr. Constantino trazia também, todos os dias, um livro ou uma revista da sua biblioteca particular. Eram romances anti-clericais, obras de pendor libertário pois este homem passara anos no Tarrafal e por isso faziam dele, agora, a referência dos seus anos de aprendizagem.
No capitulo III, o Adeus a Portugal, conta-nos a aventura em Maio de 1951, navegando em direção à Venezuela. Tinha agora quase 18 anos. ”Já a cabeça voltava a levantar para olhar longe... eu havia de ser capaz.”
No capítulo seguinte Mortágua conhece a emigração. Confronta-se com gente diferente. Experimenta profissões várias e empreende novas viagens... Descreve o percurso de lambreta pela América do Sul. Faz lembrar a aventura de Che Guevara, não fora o propósito de representar, numa campanha de promoção publicitária, uma firma que vendia lambretas! A fábrica italiana apoia financeiramente o itinerário de Caracas ao Rio de Janeiro... O folclórico itinerário, cheio de percalços rocambolescos, passaria por um evento apenas picaresco não fora porém o aprender a aprender da viagem. Deu para ver com olhos de ver a realidade social da América Latina. Deu para desenvolver o desenrascanço do "Zé Ninguém" Mortágua face às atribuladas andanças daquele percurso.
O “Zé-ninguém”, na sua “auto-análise comportamental” no período negro do ditador Perez Giménez da Venezuela, leva-o ao conhecimento da comunidade portuguesa Echos de Portugal. Existem, nesta associação, várias iniciativas sociais e culturais dos portugueses da Venezuela. Conhece então Daniel Morais, antigo membro da MUD (Movimento Unidade Democrática). Era um democrata de firmes convicções. Por isso o ajuda a consolidadar princípios éticos e políticos. Alerta-o para a “necessidade de pensarmos pela nossa própria cabeça e relativizarmos sempre os dogmas estabelecidos, a coerência entre o discurso e a prática, o amor à liberdade sobre todas as coisas e a disponibilidade para a solidariedade universal”.
Este novo impulso da consciência torna o “Zé ninguém” Camilo Mortágua, mais convincente para a intervenção cívica. Torna-se então militante da esquerda venezuelana, agente de ligações, “correio da revolução” no contacto entre vários grupos, assumindo assim uma postura internacionalista: “não importa onde se nasce, o que importa é onde se luta”.
Assim, dentro de Camilo Mortágua, o “Zé ninguém” transpirava otimismo e confiança no futuro enquanto o “Come e cala” apenas ouvia passivamente, sem nada fazer e o “Batata”, medroso como era, inventava dificuldades à vontade de mudança. O debate que Camilo Mortágua descreve nas páginas 166/167 é uma reflexão entre a polaridade conservadora e a polaridade transformadora que perpassa constantemente na realidade social e em nós próprios:
“Dizia o Batata: Não percebo porquê tanta algazarra! Estão a ver, estamos na mesma que antes, a correr de um lado para o outro, até com menos clientes, a fugir entre os automóveis, sujeitos a apanhar com uma porta pelas trombas e ainda por cima a ser insultados, sem tempo para descansar como pessoas normais... Não mudou nada... Temos tanta liberdade como a que tínhamos!
Respondia o Zé Ninguém em tom irado: Cala-te murcão... És mesmo matarroano das berças... Então já não te recordas do cimento frio e dos duches gelados que nos obrigavam a apanhar lá naquela choldra para onde nos levavam às vezes quando algum polícia de trânsito lhe apetecia embirrar com a gente? Já não te lembras do medo com que andávamos sempre tremendo com que alguns “amigos polícias” se lembrasse de mandar roubar-nos as motos? Não te interessa nada que os nossos amigos venezuelanos andassem sempre receosos de dizer o que pensavam com medo de serem denunciados à “Seguridade” do facínora Estrada, que nos vissem como estrangeiros e inimigos exploradores, que nunca quisessem conviver connosco e nos julgassem simples mercenários de fortuna; e agora te abracem e falem espontaneamente das suas vidas, com alegria e sem verem em ti um delator e um falso amigo? Não te sentes mais confiante em ti e nos outros sem as ameaças arbitrárias de uma repressão sem lei nem justiça? Não vês que a liberdade... não sentes... a liberdade... não te dás conta que estamos aqui, só nós e mais ninguém, absolutamente senhores do nosso destino, a decidir para onde voar? Acorda... porra! Temos que voar para ir alargando o espaço em que as pessoas possam exercer livremente os seus destinos!... Vamos mas é entrar na campanha a favor do Fidel em vez de estar para aqui com conversas vãs...
O “Come e cala”: “Olha o gajo! Está feito político... Estamos feitos!”
Estes debates interiores construídos com uma oralidade espontânea, são etapa narrativa em que as andanças para a liberdade o levam a uma experiência cívica que abre o caminho a uma maior politização constante que o levará a participar no assalto ao Santa Maria, nos preparativos da “ação direta” dirigida por Henrique Galvão que veio a espantar o mundo pela coragem e exemplaridade política.
Camilo Mortágua não deixa porém de referir as dificuldades e contradições nessa luta, mas ressalta sobretudo neste Capítulo V, Santa Maria – Santa Liberdade,  a positividade da sua narrativa:
“Porque, as nossas, são simples andanças de andar e dançar, de ir e vir, de passar para lá e para cá, procurando caminhos, umas vezes sérios, outras vezes parecendo que não, preferimos ater-nos a falar daqueles raros momentos em que fomos capazes de rir de nós próprios... acreditando que o riso espanta o medo e, sem medo... a liberdade é possível! (Coisa que tínhamos compreendido muito antes do Umberto Eco escrever).
É certo que éramos menos de meia dúzia de pobretanas, superiormente mobilizados e motivados para combates indefinidos. Um “D. Quixote” rodeado de “Sanchos Panças”, apeados e desarmados. Mas... “o sonho comanda a vida”, e tínhamos uma grande capacidade de sonhar, embora não fôssemos ainda capazes, por essa altura, de ousar rasgar e ultrapassar certos preconceitos cuja observação nos paralisava.
... Andávamos de seca para meca, constantemente à procura de encontrar o “divino unto” para olear a nossa emperrada máquina.”
Mortágua descreve depois, com realismo e simplicidade, e até mesmo modéstia, o assalto. O texto, cuja oralidade está sempre presente, revela-nos o fim de festa daquela aventura que tanto entusiasmo provocou. Em 21 de Janeiro de 1961 teve lugar o assalto ao paquete Santa Maria onde se proporcionou a maior denúncia feita contra a ditadura salazarista.
Camilo Mortágua descreve assim essa operação:
“Quando se ouviram os primeiros tiros, deu-me vontade de não estar ali. Com a sala da rádio e a casa das máquinas controladas, corremos para a ponte de comando a ver o que se tinha passado. Junto à escada que dá acesso à ponte de comando, apercebi-me duma pessoa deitada de barriga para baixo a esvair-se em sangue... Merda, de repente deixei de ver as estrelas e o céu ficou preto! Fazia frio... muito frio! Ergui a cabeça e segui em frente atrás dos companheiros, lá em cima, na ponte do comando, tudo tinha acabado. Disseram-me que havia um ferido que eu não vi e iniciaram-se as negociações entre o Galvão e o comandante Maia, já relatadas em muitas outras ocasiões.
Pronto, para já o Santa Maria estava sob o nosso controle... e agora?
... O que eu temia não se verificou. Não houve reação descontrolada, os 600 passageiros aceitaram os factos com absoluta serenidade e até, bastantes, mesmo emigrantes espanhóis e portugueses, com algum entusiasmo. Os americanos e de outras nacionalidades que viajavam como turistas, a esses tinha-lhes saído um grande prémio, um bónus inesperado para as suas férias.
Durante o assalto tinha-me tocado descer à casa das máquinas, ao caldeirão onde se gerava toda a energia que fazia mover aquela “aldeia libertada” dos nossos territórios de além-mar. Lá, alimentando as fornalhas, tronco nu, fui encontrar uma equipa de cabo-verdianos, homens já bem entrados em idade, a quem explicámos o que tinha acontecido. Olharam-nos com olhos de espanto... quedos e curvados... por momentos ficamos assim a comunicar com os olhos, mudos... de repente, ergueram-se aprumados, bateram-nos a pala e disseram:  - Até que enfim que é dia de festa!”
A operação terminou a 4 de Fevereiro de 1961 quando o navio foi entregue por Henrique Galvão às autoridades brasileiras. Humberto Delgado, no Brasil, a 27 de Fevereiro apoia a convocação da ONU para discutir a situação de guerra em Angola e repudia a posição colonialista do governo português.
O Santa Maria, Santa Liberdade, tornara-se assim um grande símbolo de esperança para a luta anti-salazarista.  



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Livro de José Hipólito Santos

 Felizmente Houve a LUAR - 2011




Este livro relata os acontecimentos da luta armada contra a ditadura de Salazar.
Foi um momento histórico, da luta anti-fascista, que contribuiu para o 25 de Abril de 1974.
Hipólito Santos descreve a generalidade do movimento referindo as raízes anti-fascistas e as ações dirigidas por Palma Inácio contra a ditadura de Salazar.

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LUAR 1968

Manuscrito dum relatório sobre uma operação da LUAR que se encontra descrita no livro de Hipólito Santos.
































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Liga Portuguesa do Ensino Laico em Paris - 1965


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União dos Estudantes Portugueses em França - 1964




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Margem de Certa Maneira - O Maoísmo em Portugal 1964-1974, 

Miguel Cardina, Ed. Tinta da China, 2011


Este livro de Miguel Cardina, relata com objetividade o "maoísmo" em Portugal.
Quando estive no exílio vivi algumas situações que têm também a ver com o conteúdo deste livro.
Por essa altura conheci Francisco Martins Rodrigues, o médico Pulido Valente, Dépinay, Humberto Belo, Manuel Claro e muitos outros membros da FAP e do Comité Marxista-Leninista CMLP.
Tenho uma clara e viva memória de Francisco Martins Rodrigues como um homem de grande seriedade política que muito me fascinou. Também de Pulido Valente guardo o sentido de humor, a "finesse" e a sua audácia. De Dépinay a facilidade de relações sociais e humanas e a capacidade intelectual manifestada. De Humberto Belo a fraternidade que consolidamos ao longo do nosso contacto.
Este livro do Cardina não esqueceu alguns relatos sobre este período inicial da FAP e do Comité Central entre os exilados de Paris.


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ATRIBULAÇÕES DE UM ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO DURANTE A CRISE ACADÉMICA DE 62



1977*




















       A luta associativa dos estudantes de 1962 reflectia um processo de luta mais geral: a luta do povo contra o fascismo!
Em torno da campanha eleitoral de Humberto Delgado forjara-se um movimento de massas. O operariado industrial aumentava o poder reivindicativo e os trabalhadores alentejanos batiam-se pelas 8h de trabalho.
O factor decisivo na tomada de consciência dos jovens estudantes desses primeiros anos da década de 60 foi a guerra colonial. E as tentativas revolucionárias de tomada do vapor Santa Maria e o ataque ao quartel de Beja, constituíram um contexto político marcante em todo o país.
Por isso, a vida associativa dos estudantes foi, por essa altura, assinalada por um reavivar da luta anti-fascista. Não vou porém, aqui, analisar o que foi o movimento associativo em que me vi envolvido por ser estudante universitário nas duas academias. Primeiro em Coimbra e depois em Lisboa. Até 1961 fui caloiro em Coimbra e em 1962 inscrevi-me em Lisboa. Parecia um agente de ligação naquele tempo agitado, pois circulava entre as duas academias uma vez que, estudando em Lisboa, tinha a namorada em Coimbra. Vou aqui apenas relatar acontecimentos que são retalhos vivenciados por mim. São porém, memória comum a muitos que nesse momento descobriram a repressão fascista e que despertaram para a luta contra a ditadura e a guerra colonial.
Despertaram para a luta política no seio da fraternidade associativa dos estudantes em que reivindicávamos uma universidade livre e crítica para um Portugal democrático.
Em 1960, a Academia viveu um clima de euforia. O Candal encabeçara a lista associativa das esquerdas que ganhara as eleições. Assim, a malta, mobilizada, abandonava cada vez mais a praxe tradicionalista. O convívio e o espírito contestatário atraía o ódio dos ultras, do “jovem” Portugal… e os PIDE’s farejavam inquietos. Mas a malta associativa de esquerda zurzia o canastro dos bufos que se infiltravam nos plenários.
A “via latina” trouxera um artigo explosivo para a época. A célebre carta à jovem portuguesa. E o faduncho tristonho entoando lamúrias sobre o Mondego ou a Igreja de Santa Cruz feita de pedra morena dava lugar à canção de luta.
O Café Mandarim em Coimbra regorgitava de associativos. Nasciam planos para a formação e um forte movimento nacional de estudantes portugueses. O Raínho trouxera notícias de França sobre a UNEF e quando Coimbra realizou um encontro estudantil veio malta de Lisboa e Porto. Crescia assim a luta. E quando Lisboa se preparou para o Dia Nacional do Estudante, estando eu em Coimbra voltei de imediato a Lisboa. Metemo-nos no comboio e havia muita malta. As carruagens vinham cheias. Ali na Amadora fizeram parar o comboio. Entra a polícia pelas carruagens adentro e obrigaram a desembarcar todo o pessoal com ar de estudante. Por essa altura nós vínhamos o Cabral Pinto, o Rui Baeta Neves e eu, a assobiar a música do “deserteur” de Boris Vian, em grande voga, a braços com a guerra da Argélia.
Quando nos empurraram do comboio para fora ainda nos sentamos no chão à laia dum protesto pacifista contra os matarroanos da GNR. Foi então que nos empacotaram à força nas carrinhas da guarda republicana e recambiaram-nos em grande velocidade para Coimbra.
No entanto, a maralha não desarmou. Voltei logo a Lisboa.
A 9 de Maio de 1962, logo após várias jornadas de luta, a partir do 1º Maio de 62 onde a polícia de choque malhou no pessoal que se encontrava no Estádio Universitário e se veio a refugiar na cantina da cidade universitária, o Eurico Figueiredo propôs uma greve de fome como resposta da academia contra a repressão. Éramos 81, salvo erro, os estudantes voluntários para a greve de fome na cantina. Vieram centenas e centenas de estudantes a apoiar-nos. Trouxeram cobertores, livros, etc. Lá nos instalamos, no chão, sobre os cobertores. Houve alguém que preparou água com limão e uma pitada de sal, que deveríamos ingerir durante a greve de forma. O Eurico Figueiredo estava ao meu lado e conversamos sobre o interesse da relaxação. Por essa altura eu era conhecido como o “Yoga” e ali estava eu a defender o método voluntário da resistência à fome tal como Gandhi fizera. O Brederode lá estava também. Depois, no andar de cima “botei” conversa sobre a dialéctica marxista com o Valente e o Cardia que vieram a apoiar os grevistas. O Valente veio a suicidar-se uns meses mais tarde. Era um jovem talentoso esse nosso colega de filosofia. Matou-se, roído pela mediocridade e asfixia desse país de então.
Nesse momento em que a academia lá fora se agitava na constituição de piquetes para o nosso apoio, nós conversávamos amigavelmente. O Cardia contrapunha à dialéctica o positivismo lógico… Depois, foi para mim uma dor de alma vê-lo feito Ministro…
Mais do que mártires fervorosos, nessa altura sentíamo-nos heróis dum combate que tinha apoio de muita gente. Na verdade recebíamos saudações intelectuais progressistas. Era uma honra… Por isso, resistíamos bravamente à fomezinha que começava a roer as nossas entranhas.
Na madrugada de 11 de Maio, a intervenção policial na cantina acabou repentinamente com a greve. A polícia tinha aparecido às 3h da manhã a cercar a zona.
Depois, embrulhados nos cobertores, quando começava já o amanhecer, puseram-nos dentro de autocarros. Eu estava num autocarro, que ia partir, quando saí para vomitar. Vomitava água com o sabor a limão e à pitada de sal que me deram durante a greve. Vi a malta toda preocupada e eu, para tranquilizar fiz uma postura de yoga, a vara, ficando ali uns segundos de cabeça virada para baixo. O Nuno Brederode dos Santos, espantado, ria-se da minha “facécia” naquele sítio onde reinava uma grande emoção e a polícia, especada, de armas empunhadas, nos olhava esbugalhada. Eu sentia-me como se quisesse assinalar, com este gesto, a minha provocação de resistente pacifista à repressão que se abatia contra nós.
Atiraram connosco, uns para Caxias e outros numa espécie de campo de arame farpado num quartel da GNR. Houve uma solidariedade inesquecível. Vieram professores, alunos, gente de todos os lados trazer comida e fruta. Eu estava extasiado com os acontecimentos e altamente mobilizado por essa extraordinária aventura que era a nossa luta.
Libertado, volto a Coimbra onde a agitação parecia agora fervilhar com força. Fico no antro dos aracnídeos onde também viviam os meus amigos de longa data, Cabral Pinto e Jaime Bastos.
Vivia-se realmente um clima de polvorosa. A 18 de Maio de 62, estávamos em Coimbra, no Campo de Santa Cruz com largas centenas de estudantes. Descemos ao Jardim das Sereias e o Francisco Delgado toma a palavra. Era necessário tomar a Associação que fora encerrada. Era preciso recuperar o Palácio dos Grilos. Quando caminhávamos para o Pátio da Universidade ouvia-se gritar “Vamos à tomada da Bastilha, vamos à Associação!”.
Naquela altura as instalações da Associação Académica estavam encerradas por mandato expresso da polícia. Mas fomos até lá. Chegamos à frente. Seríamos uns vinte ou trinta os que mais depressa galgaram até ao objectivo. De roldão rebentamos a fechadura. Queríamos a Associação aberta e a funcionar. Queríamo-la activa e contestatária. Nessa noite, alguns professores conhecidos, Paulo Quintela e Albuquerque, vieram falar-nos da necessária prudência táctica quanto à relação de forças do País e os perigos do vanguardismo.
Mas nós quisemos afrontar o governo e até mesmo miúdos do Liceu vieram solidarizar-se com a nossa luta. O Octávio Cunha e o Fernandes que seguiram para Caxias connosco, lá estavam a marcar a solidariedade liceal. Estivemos ali na Associação algumas horas. A noite já estava avançada quando a GNR chegou. Nós tínhamo-nos trancado por dentro. Havia uma grande tensão. A guarda batia à coronhada no portão onde mais de uma centena de jovens se tinham barricado. Lá fora, outras centenas largas de jovens estudantes rodeavam a própria polícia. O terror da repressão estava estampado no rosto de muitos de nós. Ninguém sabia o que ia acontecer e quando o portão se abriu, estilhaçado pelas coronhadas da guarda, pusemo-nos a cantar o hino nacional. Os guardas, estupefactos, colocaram-se em posição de sentido e deixaram-nos terminar o hino. Depois encafuaram-nos nas carrinhas até ao quartel da PIDE. Ali veio o Saquetti, chefe da PIDE, fazer a triagem do pessoal. Fomos então 41 estudantes presos para Caxias.
Lembro-me, entre tantos outros, do José Augusto Rocha, Rui Namorado, o Monteiro, o Casais, o Quintela, o Alá, o Mário Silva, etc.
Socorro-me agora de uma lista mais vasta elaborada pelo Rui Namorado que também não esqueceu as colegas que ficaram presas em Coimbra, na sede da PIDE:
Abílio Vieira
Alfredo Fernandes Martins
Alfredo Soveral Martins
António Bernardes
António Manuel Lopes Dias
Francisco Delgado
Jacinto Rodrigues
José Augusto Rocha
José Bretão
José Monteiro
Luís Lemos
Mac Mahon
Manuel Balonas ( Manecas)
Marcelo Correia Ribeiro
Mário Silva
Mendonça Neves ( Alá)
Mota Prego
Pedro Lemos
Rui Namorado
Uriel de Oliveira
Irene Namorado
Isabel Marina
Judite Cortesão
Margarida  Lucas

Então, encurralados em duas células subterrâneas começamos a viver um tempo que nunca esquecerei.
O Mac Maon, que estava já no fim do curso de medicina e fora presidente dos plenários, foi notável. Começamos por organizar “ministérios” dentro da cadeia. Cada grupo ocupava-se de abastecimentos, comunicações, limpezas, cultura, ginástica, etc. Eu fiquei responsável pela ginástica e fiz algumas “Azanas e pranaianas” de yoga para treino da nossa resistência pacífica.
Desencadeamos reivindicações, cantamos canções revolucionárias e obrigamos o director da prisão a ouvir-nos. Exigíamos um “habeas corpus”. Estivemos cerca de um mês em contínuas actividades, conseguindo mesmo obter recreios para ir apanhar sol durante 15 minutos por dia.  
Fazíamos palestras e discutíamos teses sobre o futuro de Portugal. Um dia, lembro-me, ouvimos na cela do lado um trabalhador alentejano contar como fora espancado pela PIDE. Gemia, tinhas as costelas partidas. Víamos por entre as grades outros presos. Assim, quando ao fim dessas semanas nos libertaram, saímos do Forte de Caxias com um novo ânimo. Despertara em nós a resistência.
Por isso, quando o Mário Silva fez um emblema em honra dos 41 de Caxias e todos, orgulhosamente, o pusemos na lapela, naquela tasquinha de Coimbra depois da ponte sobre a quinta das lágrimas, onde fomos comemorar a nossa libertação com um jantar, sabíamos que tinha nascido dentro de nós, nessa luta associativa de estudantes, uma luta mais vasta contra as ditaduras e o colonialismo.
Entoamos várias canções revolucionárias. Subi para o tampo duma mesa e dancei a “kalimka”.

*Este texto, com ligeiras modificações, foi escrito nos finais dos anos 70 para uma comunicação numa Assembleia de Estudantes na Faculdade de Economia, para a qual fui convidado pelos estudantes, como docente da ESBAP e participante nos acontecimentos de 62.

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DEPOIMENTOS EM 2012 DE CAMARADAS E AMIGOS


Do que me lembro:

Clima de entusiasmo e expectativa: sentia-se que o fim do regime estava por pouco e que nós estávamos a participar no seu derrube. As assembleias magnas sucediam-se. Corríamos de uma reunião para outra. Todos os dias circulavam vários comunicados (lembro-me deste: “Comunica-se que hoje por ser sexta-feira não haverá comunicados”). Episódio do dia do estudante, 24 de Março. A concentração comemorativa seria na cidade universitária de Lisboa. Pensámos ir apanhar boleia para a ponte de Santa Clara. Como éramos irremediavelmente preguiçosos, o jacinto e eu chegámos tarde: a fila dos utilizadores deste modo de viajar era interminável. Chegámos à conclusão que o melhor seria optar pelo comboio. Soubemos que estava um para partir com malta do coral das Letras. Fomos nesse. Porém, a polícia de todo o país (designadamente Porto e Coimbra) estava a evitar a deslocação de estudantes em direcção a Lisboa. Houve, em consequência, ordem para deter o dito comboio na Amadora. Os passageiros comuns estranharam: o comboio não costumava parar naquela estação. A demora foi longa. Sem suspeitar de nada, ficámos tranquilos. A páginas tantas, entraram na carruagem uns javardos carregados de material de guerra. Pela primeira vez vi uma metralhadora apontada ao meu peito. Toda a gente que trajava capa e batina foi obrigada a abandonar o comboio. A estação estava cercada de polícia de choque. Fizemos uma avaliação para a hipótese de fuga. Impossível. Queríamos aproveitar a situação para fazer escândalo junto da população perplexa que se encontrava na estação ou nos arredores. Ensaiámos então a cena da ocupação da linha. A adesão foi pequena porque a situação em que nos encontrávamos não tinha sido prevista. Paciência. Para provocação, o Jacinto ainda se lembrou de perguntar a um dos mastodontes fardados se o armamento era a sério ou era só para assustar a malta. A resposta foi muda, mas fez calafrios. Entretanto, chegaram à estação carrinhas da GNR. Fomos empurrados para as ditas. Tínhamos já formado um grupo que entrou para a mesma carrinha. Juntámo-nos atrás e iniciámos um animado festival de canções revolucionárias (“canta, camarada, canta”, etc.). Eu berrava, não cantava (cantar não era manifestamente o meu forte). O que importava era chatear os bófias. A partir de certa altura, começámos a reivindicar uma paragem para alívio fisiológico. E houve, de facto, uma paragem no Carregado. Sempre vigiados, dirigimo-nos a uma tasca. Numa mesa estavam quatro matulões, musculosos representantes da classe operária. Jogavam cartas com ar conspirativo (parecia-nos). Segredamos-lhes que estávamos detidos. Um, decidido, quis saber quantos guardas formavam a escolta. Adivinhávamos uma cena violenta. A libertação num gesto de solidariedade revolucionária. Mas logo outro, mais céptico quanto à firmeza da nossa opção de classe, atalhou: “não te inquietes, eles têm quem os proteja”. Ora, porra! Regressámos ao nosso cárcere móvel. A marcha era lenta e enviesada. Ao tempo, não havia auto-estrada. Bastantes quilómetros adiante, voltámos a parar (alguém, numa das primeiras carrinhas, convencera os guardas de que ou fazia xixi ou morria). Parámos num descampado. A noite já caíra, estava escuro como breu. O Rui Neves avisou que não voltaria para a carrinha. Lenta e cautelosamente, foi-se afastando, descampado fora. Nunca mais o vi. Até hoje. Chegados a Coimbra, fomos à esquadra para identificação. E depois voltámos à luta.

Mais um naco de memória
Com curtas memórias se vai reconstruindo a crise académica de 1962. Uma crise que antecipou meia dúzia de anos a francesa de 1968. Quanto às motivações de uma e de outra, tenho para mim que a diferença está nas ideias-força de liberdade: mais coletiva em 1962, mais individual em 1968. Isto, claro, in abstracto. Na realidade, nenhum movimento estudantil (nenhum movimento social) se carateriza pelo unanimismo. Em 1962, era iniludível a tensão entre os “académicos” que (por convicção ou expediente tático) pugnavam pela pureza académica do movimento e os “políticos” que o queriam ver inserido num processo mais amplo de oposição ao regime. Mas o que dava certamente mais grossura ao movimento era a massa compósita de epicuristas (para os quais a luta era uma festa: ver o confesso caso do Jacinto Aidos) e de rebeldes em conflito geracional ou simplesmente reativos ao ambiente repressivo em que viviam.
A narrativa do Jacinto Aidos refere-se à segunda ocupação do Palácio dos Grilos. Nessa não participei porque tinha ido passar uns dias de férias ao Porto. A primeira ocupação ocorreu uma semana antes (mais coisa, menos coisa). O motivo foi o mesmo: impedir a confiscação do edifício que, desde a “Tomada da Bastilha” de 1920, era sede da AAC. A direção da AAC tinha sido demitida e intimada a entregar as chaves do Palácio. Então, em Assembleia Magna (em permanente funcionamento), a malta decidiu barricar-se no velho edifício. Romanticamente convencido de que a ocupação só terminaria com acontecimentos importantes na vida académica (demissão do reitor) ou mesmo na vida política (queda do regime), corri a casa (“Antro dos Araknydios”, em Celas) para previdente abastecimento de roupas e vitualhas, aproveitando ao mesmo tempo para mobilizar os colegas que por lá se encontrassem. Não sei já quem me acompanhou (vagas reminiscências apontam para o Jaime Bastos e para o Arlindo Aidos). O grupo dos araknydios entrou no Palácio dos Grilos por uma porta lateral, uma vez que a principal estava trancada. Lá dentro o ambiente era exaltante. Havia quem cumprisse o seu programa de sono (a noite ia alta e era necessário manter o corpo em forma), mas a agitação era muito superior à imobilidade.  Na minha memória flutuam imagens fugidias, mas nada de muito preciso acerca do que conversávamos, dos prognósticos que fazíamos e dos sonhos que comungávamos. O Mário Silva pintava um mural: a figura de um estudante (agrilhoado), as grades de uma prisão e lá fora o sol da liberdade. Por momentos parávamos diante dele, assistíamos emocionados ao desenvolvimento da obra, e prosseguíamos o nosso rodopio pelos corredores do Palácio. Entretanto, corriam boatos (donde viriam eles?): a tropa do Alentejo amotinou-se e, integrando trabalhadores rurais, marchava em direção a Lisboa. O José Luís Nunes teve um chelique (ele, o monárquico-fascista que, no fim de um doloroso processo de metamorfose mental desencadeado pela epifania do seu indisfarçável nariz de semita, despertara do seu sono dogmático transformado num definitivo materialista dialético). A nossa credulidade era, na ocasião, ilimitada. Ninguém estava disposto a pôr em causa a veracidade da pseudonotícia. Por isso, ainda que sem mais cheliques, todos ansiávamos pela manhã para ver confirmada a sublevação que prenunciaria a futura aliança POVO-MFA. Infelizmente, quando a luz do dia chegou já as nossas fantasias da noite estavam realisticamente dissipadas. Mas a manhã não foi completamente dececionante: trouxe-nos a expressão de uma grande solidariedade. Desde cedo, o muro que dava para o pátio interior estava cheio de gente a lançar-nos sacos de comida. O pequeno-almoço estava garantido. E havia a certeza de que não nos faltariam mantimentos para todo o tempo que fosse preciso. A manhã só se sombreou com chegada do inimigo. O Palácio dos Grilos foi cercado pela tropa de choque. No exterior, gerou-se a confusão. Pode dizer-se que a tropa de choque foi, por sua vez, cercada pelos estudantes que acorreram de todas as Faculdades. O clima era tenso. Começaram, então, as negociações entre a direção da AAC e uma comissão mediadora de professores (o reitor tinha sido afastado do local sob irreverentíssimas vaias). E subitamente tudo chegou ao fim: as chaves da velha sede da AAC foram entregues a troco de vãs promessas. Saímos em paz, porém pouco convencidos. E, de facto, as promessas não foram cumpridas. Daí que não tardasse a necessidade de uma segunda ocupação.


Fernando Cabral Pinto - 2012 

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1. Lista de presos em Caxias vindos de Coimbra ao sabor da memória:
  
Abílio Vieira
Alfredo Fernandes Martins
Alfredo Soveral Martins
António Bernardes
António Manuel Lopes Dias
Francisco Delgado
Jacinto Rodrigues
José Augusto Rocha
José Bretão
José Monteiro
Luís Lemos
Mac Mahon
Manuel Balonas ( Manecas)
Marcelo Correia Ribeiro
Mário Silva
Mendonça Neves ( Alá)
Mota Prego
Pedro Lemos
Rui Namorado
Uriel de Oliveira

( não chegou a metade, mas foi o que consegui arranjar com um mínimo de certeza)

2. Em Coimbra, na sede da Pide, ficaram quatro mulheres:

Irene Namorado
Isabel Marina
Judite Cortesão
Margarida  Lucas


 Rui Namorado - 2012

Caro Jacinto Rodrigues:

O texto do Cabral Pinto acordou em mim uma memória adormecida que talvez mereça ser contada.

A crise de 62 foi bastante movimentada para mim: fui uns dias para Caxias, fui expulso da Universidade de Coimbra. Também ia no comboio interceptado na Amadora. Um comboio da pouco frequentada Linha do Oeste, em vez da previsível linha do Norte. Preventivamente, eu e o César Oliveira, fomos antes a casa tirar a capa e batina, pensando que em Lisboa ela seria um elemento ostensivo de identificação que não trazia qualquer vantagem.

Até à Amadora , a viagem já foi narrada pelo Cabral Pinto. Quando a polícia de choque entrou na carruagem, deu ordem de saída a quem fosse estudante de Coimbra, dado que na nossa carruagem não iam só estudantes de Coimbra, embora fossem a maioria. Nós, que estávamos à “futrica”, ainda pensámos em ficar onde estávamos, fingindo não ter a nada a ver com o assunto. Mas logo desistimos, pensando que era pior ficar isolados, correndo o risco de ser descobertos, do que estarmos junto da malta. E saímos como todos.

No largo que existia em frente da Estação, as dezenas de estudantes de Coimbra ali interceptados foram cercados por um contingente de polícia de choque mais numeroso do que o próprio grupo de estudantes. E ali ficámos à espera que chegassem as carrinhas da polícia que nos haviam de recambiar para Coimbra.

Foi então que duas colegas , que estavam junto de mim e do César Oliveira, que aliás nem se conheciam uma á outra, desabafaram contristadas que elas nem tinham nada a ver com o Dia do Estudante e que iam para Lisboa por motivos particulares, que nada tinham nem de gloriosos nem de subversivo. Logo ali o César as instigou a reclamarem, a exigirem reparação pelo abuso de autoridade e a resolução do contratempo que lhes haviam causado. Os mais próximos secundaram logo as colegas, que estavam visivelmente atrapalhadas. O César falou por elas, interpelando o polícia mais próximo, para dizer que havia ali quem não fosse para o Dia do Estudante e que não era aceitável que os tivessem arrancado sem razão do comboio, tanto mais que tinham família à espera. O polícia de choque ainda perguntou porque não tinham dito isso no comboio, mas foi-lhe respondido que tinham mandado sair todos os estudantes de Coimbra sem qualquer outra menção, pelo que tinham saído todos.

Com algum espanto, vimos o improvável a acontecer. O polícia deu-nos ouvidos e dirigiu-se a um superior. Daí a alguns minutos voltou, dizendo que ia ser conseguido transporte para Lisboa, a quem tinha saído do comboio por engano, dado não ir para o Dia do Estudante. Não era cómodo, mas era o que se podia arranjar. Até então, na nossa cabeça, quem estava nessa situação eram as duas estudantes, como nós sem capa e batina . Mas quando se tratou de irmos para o transporte, uma carrinha aberta com bancos de madeira, o polícia que se dirigiu àquela parte do grupo, perguntou quem é que tinha saído por engano. Como ali naquela zona eu e o César estávamos sem capa e batina, num gesto espontâneo, associámo-nos de imediato, com o máximo de naturalidade, às duas colegas que realmente tinham saído do comboio por engano. E lá fomos os quatro numa carrinha aberta da PSP, rumo a Lisboa. Assim, ao mesmo tempo que, como contou o Cabral Pinto, várias carrinhas da polícia rumavam a Coimbra, nós os quatro éramos transportados para Lisboa; e ás 10 e meia da noite fomos deixados sem sobressaltos no Rossio.

Dormi em casa dumas primas do César e ao outro dia de manhã lá fomos para a Cidade Universitária, onde desde logo vimos a polícia de choque “limpar” de estudantes a Pró-Associação de Medicina que funcionava no Hospital de Santa Maria.

Rui Namorado -2012
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CRISE ACADÉMICA COIMBRA 62
Venho de longe, de muito longe, o que eu passei para aqui chegar - diz a canção de José Mário Branco. É com esta sensação de um tempo e percurso longínquos e de uma memória ancestral que respondo ao convite que me foi feito para revisitar a “Crise Académica de Coimbra 62”, enquanto dirigente que fui, à data, da Associação Académica de Coimbra (DGAAC) e cujos acontecimentos, com José Luís Nunes, José Monteiro e a colaboração de Irene Namorado e Judite Cortesão, viemos a fixar numa cronologia inicialmente manuscrita intitulada “Sumário da Crise”, publicada no nº de Março de 1968 do Jornal “Badalo”, do “Conselho das Repúblicas” da Academia de Coimbra, e que mais recentemente, com pequenas notas, postei e está disponível no blog “Caminhos da Memória”.
Pouco interpretativa e exaustivamente factualizante, essa cronologia não se reivindica de um estudo conceptualizador da lógica interna do movimento associativo de Coimbra 62, antes constitui um registo memorial e ponto de partida para futuros estudos. Hoje, com o escrito que me proponho, o que se pretende fazer é abrir notas soltas sem excessos factualizantes e inserir os eventos da crise no seu contexto de gestação e desenvolvimento, evidenciando em que medida a vitória das “esquerdas” nas eleições para os corpos gerentes da AAC, em 61 e 62, inaugurou uma nova fase do movimento estudantil e criou no regime uma certa dramaticidade em virtude da perda do controlo ideológico de largos sectores da juventude universitária.
A chamada “Crise académica de Coimbra 62” – designação eufemística consagrada por várias gerações de estudantes - resultou de uma multiplicidade de factores, entre os quais é possível localizar a opressão cultural do Estado Novo e o passadismo, conservador e autoritário, da universidade; o crescimento dos movimentos de oposição interna ao salazarismo; e a agudização das pressões externas sobre a política de irredutibilidade colonial. Desde logo, a guerra colonial é um factor influente no movimento associativo de 61/62 e marca de forma indelével a própria composição dos órgãos dirigentes da DGAAC, levando para a guerra o presidente eleito, Lopes de Almeida, e, logo de seguida, o seu substituto, Jorge Aguiar. A minha eleição para a Direcção Geral da AAC, a solicitação de José Carlos de Vasconcelos, após artigo que publiquei na Via Latina, nas comemorações do Dia do Estudante e intitulado “ A Historicidade da Bastilha”, e a insistência do meu grande amigo e “ministro dos negócios estrangeiros” da DGAAC, António Taborda, dimana da circunstância e da necessidade da recomposição da direcção central abruptamente desfalcada pelo aparelho repressivo da guerra colonial, o mesmo acontecendo com os novos elementos eleitos, José Sumavielle e David Rebelo. Devo dizer, sem nenhum complexo de mártir, que as forças hostis que se organizavam na sombra e se cumpliciavam com o aparelho de repressão do corporativismo universitário e policial do Ministério do Interior e da polícia política (PIDE), iam ter em mim um convicto e firme defensor da liberdade e autonomia da AAC, o que uma prática coerente e firme ao longo dos acontecimentos da crise - para felicidade e orgulho da minha identidade - veio felizmente a comprovar, com a expulsão por dois anos de todas as escolas nacionais e o encerramento no reduto Norte do forte de Caxias, e, finalmente, a honra de, com os demais elementos da DGAAC, ser julgado, em 6/dezembro/62, por um crime de desobediência ao Ministro da Educação Nacional, pela realização proibida do “I Encontro Nacional dos Estudantes.”
 A opressão cultural que o regime do Estado Novo cultivou e impôs durante anos, encontrou no passadismo conservador e tradicionalista da Universidade - uma das suas instituições mais importantes - um ponto fraco que levou ao início de uma ruptura das consciências e das práticas sociais de muitos estudantes universitários que já não encontravam na universidade e nos seus métodos de reprodução cultural e ideológico a satisfação da sua procura intelectual em vários domínios, do saber à participação cívica. Estudantes envolvidos, em Coimbra, pela actividade efervescente das múltiplas secções da AAC, e dinamizados pela prática aberta e inovadora de organismos como o CITAC, o TEUC e o Grupo de Danças da Faculdade de Letras, organismos circum-escolares solidários com as manifestações de sindicalismo estudantil nascente com a DG da AAC de Carlos Candal e prosseguido com a direcção de 62, cujas iniciativas de âmbito associativo nacional sempre participaram e apoiaram, até ao limite da repressão da polícia, como viria a acontecer, mais tarde, com a deslocação da academia de Coimbra a Lisboa, para a comemoração do Dia do Estudante.
Por sua vez, a campanha eleitoral do General Humberto Delgado permitiu incorporar no movimento associativo estudantil importantes dimensões políticas, influenciando decisivamente a “cultura política” de numerosos estudantes que ao tempo das eleições presidenciais frequentavam os anos terminais dos liceus e que em 1961 se haviam já matriculado nas universidades, como foi o meu caso. O crescimento das pró-associações dos liceus, de que um dos seus dirigentes, em Coimbra, era o hoje conhecido Juiz Conselheiro e Director do blog “Sine Die”, Maia Costa, é também muito influenciado por esse processo de politização de jovens estudantes e sempre muito bem aproveitado no sentido de uma importante agitação cultural e social, de que, por exemplo, a criação do CITEV (Centro de Iniciação Teatral dos Estudantes de Viseu) é um bom exemplo a reter e a que a Via Latina, jornal da AAC, deu expressivo relevo no contexto da existência de um director da DGAAC – que era eu próprio – de ligação aos movimentos estudantis juvenis.
Num ambiente efervescente de dinamismo social, cultural e agitação política, ultrapassado o quadro corporativo associativo da década de cinquenta da luta contra o Decreto 40900 (56/57), onde o movimento associativo encerrava uma fase da sua história, que continha em si os elementos anunciadores do nascimento da nova fase do sindicalismo, Coimbra 62 preparava-se para uma crise académica de dimensões profundas, de que vamos procurar traçar, na economia do espaço de que dispomos, as principais linhas evolutivas.
Uma nota que permite uma melhor compreensão do movimento académico da crise 62 de Coimbra, centra-se na identificação dos sectores de opinião académica presentes no processo conflitual então mantido pelos estudantes com os poderes universitário e governamental, e no posicionamento dos diferentes quadrantes da academia acerca das reivindicações e estratégias de contestação centrais do movimento. As forças em presença no meio universitário coimbrão de 62 podem agrupar-se em três blocos: os católicos, “as direitas” e as “esquerdas”. Se considerarmos o universo total da população estudantil coimbrã, avaliada em cinco mil estudantes, nos anos de 61/62, com propriedade se poderá afirmar que o movimento nunca registou uma verdadeira unidade. O afastamento dos católicos e das “direitas”, relativamente a certas proposições do discurso reivindicativo do movimento estudantil e às tomadas de posição quanto aos meios de contestação liderados pela DGAAC, tornou-se manifesto a partir da altura em que o movimento acentuava o seu pendor sindicalista e encetou acções de massa no sentido de afastar o todo poderoso reitor da Universidade, Prof. Braga da Cruz, acentuando o discurso conflitual mantido entre os estudantes o poder. A actuação das “direitas”, agrupada no “Movimento Jovem Portugal” e no jornal “Combate”, situou-se sempre no plano antiassociativo, visando desacreditar com campanhas sujas a actuação da AAC e a daqueles que defendiam a sua liberdade e autonomia. Já os católicos, reunidos à volta do CADC e do seu órgão “Revista de Estudos”, nunca expressaram uma posição antiassociativa e jamais se revelaram contra a existência da AAC, muito embora, por vezes, mantivessem uma posição ambígua, quer apoiando o Reitor Braga da Cruz, quer arguindo a DC da AAC de ter violado as suas obrigações estatutárias de neutralidade ideológica ao permitir a deslocação do movimento “para fora dos interesses puramente académicos”. As “esquerdas” incluíam os elementos afectos às direcções gerais de 1960-61 e 1961-62,onde era importante a posição do “Conselho das Repúblicas” e do Conselho dos Veteranos” e onde se incluíam também os estudantes das células universitárias do PCP, sempre cautelosos no seu posicionamento para não comprometerem a unidade do bloco de estudantes afectos à DGAAC.
Aos problemas de unidade me referi, mais tarde, em depoimento publicado em Março de 1998, no jornal “Badalo”, do Conselho de Veteranos, no mesmo número que publicou o já referido “Sumário da Crise”. Sublinhe-se que, ao contrário do que a repressão do poder fazia crer, a DGAAC 62, de composição heterogénea, (à semelhança da de 61) não continha, com a saída de Lopes de Almeida, qualquer elemento ligado ao PCP. Daí as pressões que estes faziam sobre a Direcção Geral, principalmente através da exigência de reuniões periódicas mensais de pontos da situação entre os seus elementos mais destacados e elementos da DG, mas sempre por esta rejeitadas, sem prejuízo da sua actividade estruturada nas secções e organismos circum-escolares e participação activa nas assembleias magnas. O próprio jornal “Via Latina”, de que era Director, Avelãs Nunes, Chefe de Redacção, José Carlos de Vasconcelos e Director Gráfico, Eduardo Batarda, seguiam a mesma evidência de ausência de estudantes comunistas, mais tarde acontecendo o mesmo quanto à composição dos órgãos directivos do Secretariado Nacional dos Estudantes Portugueses.
Contudo, atendendo ao caracter massificante de certas iniciativas de contestação, de que se salientam a histórica não realização da Queima das Fitas, o “luto académico”, as marchas de protesto pelas ruas da cidade (quatro mil estudantes no encerramento das instalações da AAC), os plenários de Santa Cruz e as assembleias magnas, dever-se-á considerar inédito o grau de unidade e de consenso conseguidos pelos estudantes de Coimbra 62, em torno de problemas de confronto com a universidade e o poder político.
Em nosso entender, a vitória das “esquerdas” da lista presidida por Carlos Candal (60/61), marca uma viragem importante, senão mesmo decisiva, para o movimento associativo, permitindo o movimento nacional ao nível dos estudantes universitários de Lisboa e Porto. O Dia do Estudante, realizado na data da Tomada da Bastilha (25 de Novembro de 1961), que tinha para os universitários de Coimbra um elevado valor simbólico e o “I Convívio Universitário” (Fevereiro de 62), representaram um contributo decisivo no empenhamento e articulação entre as estruturas associativas a nível nacional e para a reivindicação da autonomia da Universidade. Por sua vez, ao nível de Coimbra e mesmo no âmbito nacional das três academias, a questão da “rapariga universitária portuguesa” abre um debate importante sobre a presença feminina no meio estudantil e na sociedade portuguesa. A “Carta à Jovem Portuguesa,” de Marinha de Campos, foi a mola impulsora que conduziu e alterou em muito o meio universitário coimbrão e dinamizou órgãos como a” Assembleia de Universitárias” e o “Conselho Feminino da AAC.”
A reeleição de uma lista democrática em 61/62, ou seja, um ano depois, marca uma linha de continuidade “democrática” na condução dos destinos da AAC e agudiza a incompatibilidade do discurso e acção do movimento associativo com o autoritarismo corporativista do regime e da universidade, de onde a representação dos estudantes no Senado e na Assembleia Geral da Universidade tinha sido suspensa, pela longínqua “ordem de serviço” do Ministro da Educação, de 6 de Novembro de 1936, ao mesmo tempo que foram suspensas as eleições na AAC, tendo sido nomeada a primeira Comissão Administrativa, presidida por João Pedro Miller Guerra. O grupo católico começava desta forma, por cooperar com a estratégia do Estado Novo e da “sua Universidade”, consumando assim o processo da ligação da Universidade ao regime. Processo que era acompanhado de outras leis gerais repressivas, extensivas a todas as instituições e a todos os funcionários públicos, como era o caso do famigerado decreto-Lei nº 27 003, de 14 de Setembro de 1936, que obrigava todos os funcionários do Estado ao seguinte juramento: “ Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.” Situação que se segue ao Decreto-Lei 25 317, qua abria as portas a grandes depurações políticas e onde no seu artigo 1º podia ler-se: “ os funcionários ou empregados, civis ou militares, que tenham revelado ou revelem espírito de oposição aos princípios fundamentais da Constituição Política, ou não dêem garantia de cooperar na realização dos fins do Estado, serão aposentados ou reformados, ou demitidos em caso contrário”. Foi no contexto desta legislação que foram demitidos para além dos Professores Abel Salazar e Rodrigues Lapa, da Faculdade de Letras de Lisboa, entre outros, os professores Sílvio Lima e Aurélio Quintanilha, respectivamente da Faculdade de Letras e da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra e mais tarde, no consulado do Ministro da Educação, Pires de Lima, mais onze professores catedráticos, dois professores extraordinários e rescindido o contrato a oito assistentes. Não será ocioso lembrar o facto de o Ministério da Instrução Pública, convertido em 1936 em Ministério da Educação Nacional, ter sido ocupado, desde 29 de Junho de 1934 até 4 de Dezembro de 1962, por Professores originários de Coimbra, à excepção de um caso, o Prof. Francisco de Paula Leite Pinto (da Universidade Técnica de Lisboa). Através de outros índices, que o espaço deste escrito não deixa tratar, verificar-se- ia que a Universidade de Coimbra participou activamente no aparelho do Estado Novo, tendo-se constatado uma identificação muito clara entre os interesses políticos do salazarismo e os interesses político-culturais da Universidade.
Tomando posse em 30 de Outubro de 1961, a DCAAC confronta-se desde logo com a linha dura do regime do Estado Novo, sedenta de purgas e depurações, agora não de Professores, mas de dirigentes e activistas, encabeçada pelo “integrado” Reitor, Prof. Braga da Cruz, Santos Júnior, Ministro do Interior, que mais tarde subalternizaria por completo o Ministro da Educação Nacional, Lopes de Almeida, e o próprio aparelho da polícia política, dirigido para os meios estudantis pelo Inspector Sachetti, com sede em Coimbra. À DGAAC foi, logo no início do seu mandato, preanunciada a repressão que viria a acontecer, na entrevista que teve com Santos Júnior, no mês de novembro, onde este anunciou “uma linha dura do governo contra o movimento estudantil, cujas manifestações de unidade estudantil, ao nível nacional, não seriam permitidas.” Esta entrevista, cujo “ambiente” a DGAAC comunicou a Porto e Lisboa, seria premonitória da repressão que viria a acontecer, nomeadamente com a proibição do I Encontro Nacional de Estudantes - que abri e presidi com Jorge Sampaio em ambiente de grande tensão - e o Dia do Estudante.
Logo em Novembro, em entrevista à DGAAC, acompanhada do Director da Via Latina, Avelãs Nunes, o Reitor Braga da Cruz manifestou graves preocupações pela orientação daquele jornal e classificou a Assembleia Magna de “tribunal do povo”, propondo a alteração dos Estatutos da ACC, objectivo de há longos anos perseguido pelo Estado Novo e sua “Universidade”. A 25 de Novembro, “Dia do Estudante” de Coimbra, com a presença de Lisboa e Porto, a praxe foi abolida através de um “Decretus” do Conselho de Veteranos, cujo conteúdo foi considerado político e levou àquilo que era considerado impensável: a prisão pela PIDE do “Dux Veteranorum” e dos seus quinze membros, que se mantiveram nos calabouços da prisão até Fevereiro de 1962. Este sinal foi considerado verdadeiramente preocupante e colocou o movimento associativo sob grave expectativa quanto à repressão seguinte. Entretanto, as importantes jornadas em Coimbra de comemoração das lutas estudantis contra o Decreto 40900, antecederam, a 3 e 4 de Fevereiro, em Lisboa, a reunião nacional de dirigentes associativos, na qual se decidiu constituir, com caracter provisório, o Secretariado Nacional dos Estudantes Portugueses (SNEP) e, na mesma reunião, deliberar o I Encontro Nacional de Estudantes, a realizar em Coimbra, entre os dias 9 e 11 de Março. A sua realização, sob proibição, seguida da proibição do Dia do Estudante, em Lisboa, a 24 de Março, conduziu à Portaria do MEN, de 7 de Maio de 1962, através da qual foram suspensos os corpos gerentes da AAC e revogados alguns normativos dos respectivos Estatutos (artigos 20 a 34), que definiam as atribuições e o modo de funcionamento da Assembleia Magna. Determinava ainda o MEN incumbir uma Comissão Administrativa composta pelos estudantes que então ocupavam os cargos de Presidente da Assembleia Magna (José Pedro Belo Soares), Presidente do Conselho Feminino (Maria Isabel Salomé) e presidente da Secção de futebol (Abílio Vieira), de gerir os destinos da AAC. A força do movimento associativo impediu o exercício de funções tão aviltantes, que os próprios viriam a recusar. As duas ocupações da sede da AAC pelos estudantes, o cerco da polícia de choque, os concorridos plenários do Campo de Santa Cruz, as prisões dos estudantes activistas pela PIDE, as expulsões da Universidades dos quadros dirigentes do movimento associativo de Coimbra, são páginas inesquecíveis de coragem e solidariedade entre estudantes, momentos altos de honra e dignidade para sempre inscritas na história do movimento associativo, que hoje aqui lembro neste cinquentenário da crise académica, numa singela homenagem a todos quantos souberam lutar, sem ceder, pela causa da liberdade e autonomia da AAC.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2012.
José Augusto Rocha
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Memórias de 62

As nossas memórias de 62 começam, evidentemente, uns tempos antes.
Porque essa luta foi o culminar de um processo de que aponto os acontecimentos mais próximos : o inicio da Guerra Colonial com o abrir de contradições na esquerda, e o Encontro Nacional de Estudantes em Coimbra em 1961, com encerramento e convívio na minha República, a Pra- Kys – tão.
A guerra Colonial desencadeou várias contradições politicas, cívicas e éticas.
Fazer a guerra? Desertar? Frente de luta nas Colónias, sabotando o Exército? Luta clandestina?
E apareceu um facto novo : uma bela manhã desapareceram de Coimbra dezenas de estudantes negros, mulatos e Indianos. Tinha começado a adesão à luta pela independência dessas colónias.
A partir daqui, a minha posição era clara : como podia ir combater frente a camaradas que tinham sido parceiros da luta anti-fascista?
E a luta de 62 mostrava claramente a unidade existente entre os estudantes de todas as raças e origens : porque não eram só eles que lutavam pela independência das suas Pátrias; nós também lutávamos pela libertação de Portugal.
A minha participação nessas lutas foi constante, só interrompida pela inesperada chamada para a tropa na Companhia Disciplinar de Penamacor.
Foi o primeiro grupo de um castigo politico reinventado pelo fascismo: eu, como estudante, Barbosa médico, Morais Cabral advogado e Júlio Taborda , professor de Liceu.
Devo dizer que o contacto com os marginais, ladrões e burlões da época foi inesquecível e recheado de notas interessantes. De que realço a noção de lealdade e ódio aos bufos e traidores. Muito radicais para os tempos que correm, mas isso é outra conversa.
Depois de uns meses fiquei isento porque me descobriram uma mancha no pulmão ( felizmente era uma antiga marca de infância, mas isso eles não descobriram…).
Segui para Lisboa onde reencontrei camaradas que tinham sido expulsos de Coimbra. E  na Faculdade de Direito outra actividade : no jornal Quadrante eu e o Rui Namorado escrevemos o artigo de capa “ Da Universidade caduca à Universidade Nova” lindamente  ilustrado com um desenho do Bordalo Pinheiro que mostrava um lente com orelhas de burro. Depois havia um longo artigo do Almeida Faria e Nuno Brederode – “ Autópsia do Ensino”, etc., etc. Resultado: o director Almeida Fernandes foi expulso por 6 meses e o jornal nunca mais saiu.
A partir daí ocupei-me com a tarefa de fazer renascer o grupo Cénico de Direito, o que foi conseguido devido ao apoio da Gulbenkian e à participação dos profissionais Fernando Gusmão e Luís de Lima.
A revolta estudantil continuou e é de referir uma luta injustamente esquecida, longa e mais politizada em 1965, desencadeada pela prisão  e tiros com que  a Pide agrediu Saldanha Sanches. Houve muitas expulsões
mas a luta dos estudantes ia-se fortalecendo politicamente. Tornava-se claro que a luta Associativa era insuficiente para muitos dos que combatiam e para a própria massa estudantil.
Trata-se de um momento de salto qualitativo : o aparecimento de movimentos clandestinos que irão dar origens a organizações politicas.
Falo do movimento sindical estudantil, mais tarde EDE, etc.
A minha prática politica, orientava-se muito no trabalho de frente Cultural através do teatro e outras intervenções em Clubes e Associações populares de Lisboa e Margem Sul.
Como acção clandestina , além da divulgação de textos marxistas e maoístas para criação de grupos para futura integração em organizações mais fortes e abrangentes, dava absoluta prioridade à luta contra a Guerra Colonial. E ficámos felizes com a liberdade que conseguimos garantir para muitos amigos e camaradas, independentemente das suas opiniões politicas ou partidárias.
E em 1967, devido a uma denuncia , fui obrigado a seguir para Paris onde me esperavam outras frentes de luta.

Hélder Costa - 2012

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Foi-me proposto pelo Jacinto Rodrigues, para dar o meu testemunho, sobre o ambiente Coimbrão de há 50 anos atrás, bem como do movimento estudantil que eclodiu nessa altura, no qual tive ocasião de participar.
É com muito gosto que respondo ao seu repto, embora a minha visão sobre os acontecimentos dessa época já estejam pela força das circunstâncias, muito diluídos na minha memória.
Recordo-me de uma cidade medieval, com tradições académicas bem vincadas, nomeadamente o rapanço dos caloiros, a fuga ás “Trupes”, o rapinanço dos galináceos, os “cocas” com binóculos e outras peripécias nocturnas pelo Terreiro da Erva.
Participei na fundação de uma espécie de república, baptizada com o nome de Antro dos Aracnídeos, que ficava para as bandas da Cruz de Celas e onde tínhamos como estandarte um par de cornos hasteados. Não faltavam as malandrices, estou-me a recordar, numa certa noite, na tentativa de furtar um porco, operação que se malogrou pelo aparecimento repentino da polícia, que nos deu ordem para parar, seguindo-se uma fuga bem sucedida.
Sobre o movimento de revolta estudantil contra o regime da ditadura, vi-me envolvido no mesmo, não por motivos políticos que os não tinha, mas apenas por mero aventureirismo juvenil. Estou-me a lembrar, em particular, do momento mais dramático então vivido, que se passou na Associação Académica, onde fizemos uma barricada com mesas e cadeiras, em resposta a um cerco efectuado pela GNR. Seguiu-se o arrombamento pelas forças policiais, que nos conduziram para carrinhas celulares estacionadas nas proximidades e onde era visível um grande aparato com homens fortemente armados. Dali seguimos para o quartel da GNR local, onde nos foram tiradas as impressões digitais, fotografados e revistados, seguindo-se uma triagem, da qual resultou uma parte do grupo ser enviado para Caxias e os restantes restituídos á liberdade.
Não me vou alongar neste meu testemunho, então vivido, porque, como referi no início, as minhas lembranças já não são muitos precisas, deixando aqui um forte abraço aos meus companheiros dessa época e que comigo participaram nessa exaltante aventura.

Jacinto Aidos - 2012

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NOTAS PARA ENTREVISTA FEITA POR JOÃO GASPAR A JACINTO RODRIGUES - JORNAL UNIVERSITÁRIO DE COIMBRA - A CABRA 

12 MARÇO 2012


1958 - 1962 

O interesse que vejo em reavivar a memória não é a nostalgia. É essencialmente estimular a geração futura para que se procurem soluções para o futuro.
O Movimento da Crise Académica de 62 foi um surto de agitação social num meio estudantil que transformou o voluntarismo de uma pequena minoria estudantil num associativismo de massas. Foi o encontro de várias vontades de jovens face ao corporativismo conservador e repressivo do fascismo então vigente em Portugal, procurando a liberdade para a cultura e mudança de costumes na relação homem-mulher e face ao autocratismo da sociedade de então.
Hoje, em 2012, temos uma sociedade de consumismo, de massificação, de indústria cultural e de neoliberalismo económico-social. A “democracia” da aparência está, de facto, vendida  ao capital financeiro mundial. Esta nova estrutura civilizacional criou um modelo de crescimento que é baseado numa tecnosfera esgotante, contaminante e de exclusão social. Hoje a nova problemática social articula-se com a ecologia. A predação da tecnosfera baseada em energias fósseis e poluitivas impede a regeneração da biosfera agravando progressivamente o fosso social em cada país e no conjunto geopolítico mundial.
A paisagem ameaçadora que temos no mundo atual, com o agravamento de conflitos sociais e guerras e simultaneamente com a manifestação de acidentes naturais (mudanças climáticas, surtos de epidemias, etc.), constitui um paradigma novo que desafia as lutas do futuro. Existem prenúncios de uma resistência a este fenómeno de globalização neoliberal. E existem já experiências sociais e novas tecnologias que apontam para um outro paradigma.
Germinam também alternativas ao modelo de crescimento e surgem propostas de ecodesenvolvimento que permitirão ao movimento de jovens estudantes, bandeiras de novas lutas.
Dito isto, precisamos de situar a contradição da crise académica de 62 no contexto específico e histórico dos anos 60.
Isto não impede que o reavivar da memória daqueles anos não seja estimulante para os dias de hoje e de amanhã, sem contudo formatar posturas idênticas. No entanto, a participação social e a solidariedade manifestada naquele tempo são projetos comuns do movimento estudantil para os tempos que correm.
As contradições na crise académica de 62 colocavam a massa estudantil face à repressão fascista de toda uma sociedade dominante que através dos instrumentos repressivos militares e dos instrumentos ideológicos e culturais, asfixiavam a sociedade e a juventude desse tempo.
Havia no entanto uma esteira de lutas políticas e sociais que se adensavam progressivamente numa luta sem tréguas contra a ditadura.
Em Maio de 58 o “General sem medo” Humberto Delgado, declarava na campanha eleitoral este vaticínio sobre Salazar: “Se eu for eleito obviamente demito-o.”
A imensa explosão social resultante da campanha, o mar de gente do Porto que encheu as artérias da cidade, da baixa dos Clérigos à rua 31 de Janeiro e à Avenida dos Aliados, foi o despertar de uma massa da sociedade civil que parecia totalmente imersa no marasmo e na paralisia.
No entanto, a fraude eleitoral e a repressão contínua, mau grado as contradições no seio do regime não permitiram a vitória eleitoral mas despertaram em toda a oposição ao regime salazarista, a clara ideia de que o voto era insuficiente para a mudança do regime. Daí a tentativa militar de Humberto Delgado e a sua partida para o exílio.
Interessa referir o contexto colonial para percebermos todo um ambiente social que contextualizava essa época.
Assim, o ano de 61 exprime uma grande convulsão política que abala o regime de Salazar:
Em 12 de Janeiro, Henrique Galvão assalta o navio Santa Maria com 23 homens.
A 4 de Fevereiro o movimento nacionalista angolano realiza um ataque à Casa de Reclusão militar em Luanda e a 15 de Março rebenta a insurreição da UPA.
A 10 de Novembro, Palma Inácio desvia o avião da TAP.
A 13 de Novembro a ONU condena a política colonial portuguesa.
A 18 de Dezembro a União Indiana ocupa os territórios sob dominação colonial portuguesa (Goa, Damão e Diu).
As tentativas de modernização do aparelho de Estado como a presença de Adriano Moreira como Ministro do Ultramar ou a tentativa frustrada de Botelho Moniz, vindas do próprio regime, não colhem. Porém, o movimento estudantil começa a manifestar-se querendo acompanhar as brechas do sistema.
A direção da Academia de Estudantes de Coimbra, de esquerda, com Carlos Candal, expressa a juventude estudantil universitária que, embora proveniente de uma elite social, manifesta os sobressaltos da sociedade envolvente.
Assim, a Casa de Estudantes do Império, que representava os estudantes das ex-colónias, também manifestava anseios que se refletiam no que se passava no mundo colonial. No entanto, os novos corpos dirigentes desta Associação, eleitos democraticamente, não são aceites pelo governo.
Interessa referir ainda que a Igreja, a nível internacional, com a chegada de João XXIII ao Vaticanos e a publicação, em 1961, da “Mater Magistra” aparece vocacionada para as questões sociais no mundo. Em Portugal, este fenómeno teve repercussões significativas.
A carta do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, resulta desta manifestação cultural de mudança de mentalidade na Igreja retrógada de então.
Contudo, o regime continuará com o sistema repressivo, enquanto o movimento estudantil se manifestava cada vez mais de forma ativa.
O que pretendo dizer, de uma forma sintética, é que o movimento estudantil desperta, havendo no País uma forte base social com convulsões políticas, visando a modernização da sociedade e o fim do regime fascista. O voluntarismo dos dirigentes estudantis juntava-se a essa revolta. Expressava aquela mesma esperança que se iniciou com o furacão social do movimento de massas nas eleições de Humberto Delgado. E a partir daí sentia-se no ar que os ventos de mudança não parariam mais neste País roído de contradições e impasses.
O que torna singular esta crise de 62 é que as lutas estudantis assentavam numa ressonância comum com as manifestações de rua do primeiro de Maio desse ano, com greves e com viragens de mentalidade em toda a sociedade. Contudo, essa viragem oscilava entre a modernização do próprio capitalismo e os ideais duma revolução estrutural.
Embora fosse essencialmente uma resistência contra a sociedade conservadora e fascista, essa resistência inventava processos de solidariedade e expressava valores progressistas que se abriam para soluções revolucionárias dalguns dos mentores e interventores do movimento estudantil.
Em 1958 fiz então a primeira experiência de alargamento da minha consciência cívica. Era ainda um jovem estudante de Liceu que me confrontava com a responsabilidade cívica de intervir socialmente. O contexto que vivi no Porto, com a participação nas manifestações em torno da candidatura de Humberto Delgado, alargaram a minha consciência.
Foi uma época em que frequentei também o Cineclube e o TEP (Teatro Experimental do Porto). Oscilei entre a biografia de Gandhi, de Louis Fischer, identificando-me com a militância pacifista e a leitura de romances neorealistas de Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Papiniano Carlos, Jorge Amado e Graciliano Ramos. 
Colaborei no Elo e Inicial, jornais de alunos, com artigos que apontavam para questões sociais e para a educação mista na escola.
Não faltaram mesmo iniciativas de conhecer um Portugal profundo. Lembro-me de uma longa viagem em férias, em que com o Cabral Pinto, fomos à boleia e percorremos serranias e aldeias deste país, numa espécie de micro viagem “guevarista” de que ainda não tínhamos conhecimento.
Coexistiam assim, em mim próprio, o romantismo juvenil e o idealismo utópico, com interesses cada vez mais marcados pela revolução social.
Em 1959, o meu último ano do Liceu, vou a Angola onde observo a realidade dramática da colonização com a exclusão social entre a cidade branca e os musseques. Aí recebo uma formação política do meu primo, o poeta António Jacinto, do Luandino Vieira e do António Cardoso que, em breve, em 1961, seriam enviados para o Tarrafal, acusados de envolvimento no movimento nacionalista do MPLA.
Contacto com velhos amigos da escola primária que fizera em Luanda. O Manuel Guerra, que viria a ser o escritor Benúdia. Encontro o Adelino Torres, o Jorge Almeida Faria, o João Abel, o José Manuel Gonçalves, o Humberto Brito e o Caobelo (Carlos Alberto Belo). Com este último colaboro no Jornal de Angola e com os outros amigos participarei numa antologia “Força Nova”, coletânea de poesia de estudantes de Luanda, publicada em 1960 graças à tenacidade do Adelino Torres. Foi em Angola que me iniciei nas leituras de Josué de Castro e na poesia de Nazim Hikmet, graças ao poeta António Jacinto. Leio também, graças a ele, o romance “Nassredim o Vagabundo” de Leonidas Soloviov.
Esta passagem por Angola foi uma viragem importante em relação às minhas convicções.
Consolidava-se, ainda que mantendo o romantismo e o orientalismo, uma orientação por uma conceção do mundo comunista, no sentido global.
Em 1960, depois de completar o grego e o latim do Liceu Salvador Correia de Luanda, parto para Portugal. Entro na Universidade de Coimbra.
Continuo empenhado na Filosofia Oriental. Estudo Ioga e o Tao. Continuava a coexistir em mim essa visão poética do mundo e a necessidade de uma visão realista que o dever cívico impunha. Trazia, desta vivência, o conhecimento da realidade colonial que iria alargar a minha visão sobre a política fascista em Portugal.
Também aí, em Coimbra, a resistência cultural fazia-se sentir pela busca de alternativas ao deserto da ideologia dominante que nos asfixiava.
Lembro, por exemplo, que procurávamos livros que clandestinamente chegavam a Portugal.
No nosso próprio curso de Filosofia, na Faculdade de Letras de Coimbra, quando existiam professores mais liberais, essa busca de liberdade refletia-se mais. Assim, a “sebenta” ou as notas para o curso do Professor Sílvio Lima, em teoria da História, estavam cheias de páginas do livro “O Processo Histórico” de Clemente Zamora.
Naquela época, um dos anseios mais importantes dessa juventude era a mudança da repressão nos costumes. As raparigas viviam nos lares de freiras, depois das aulas e poucas participavam no convívio social e na camaradagem da vida estudantil.
Posso aqui referir um exemplo que é ridículo mas revelador do clima repressivo da época.
Dei um beijo na minha namorada, no Penedo da Saudade e a Polícia dos Costumes veio solícita e rapidamente pedir-me a identificação, admoestando a minha imoral insolência…
Todo este contexto delirante mostrava uma patologia geral nas relações entre as pessoas. Foi assim que fui percebendo, nesta existência atribulada e concreta, o conteúdo das reflexões de Wilhelm Reich, nos livros “Psicologia de Massas do Fascismo” e “Escuta Zé Ninguém” que iria ler mais tarde em França, em Maio de 68 e que mostravam o fascismo quotidiano, idêntico ao que havíamos vivido em Portugal, no nosso tempo.
A Carta do Marinha de Campos a uma Jovem Portuguesa, publicada na Via Latina, a 19 de Abril de 1961, surge como um momento importante na vida académica de Coimbra. Apareceu como um manifesto de libertação da mulher e um desafio à mentalidade dominante. O texto não tem, no entanto, nada de revolucionário. Contudo, esta paralaxe subjetiva resulta da situação opressiva em que se vivia, nesta sociedade de mentalidade conservadora, machista e autocrática. Convém ainda salientar que, mau grado estas reivindicações massivas da academia universitária face à mentalidade dominante, coexistia na sociedade portuguesa, uma forte componente de “Zés-Ninguém”. Com efeito, o setor mais tradicionalista da Igreja continuava a impregnar toda a sociedade. Também os meios de comunicação social, controlados pelo poder, reproduziam o “habitus” e o “status” da sociedade global e das instituições controladas pelo Estado totalitário.
Outro exemplo era o medo permanente que nos acompanhava na vida social. Era uma espécie de delírio persecutório, uma paranoia que nos acompanhava permanentemente, tal era a repressão nesses anos do fascismo. Na verdade, não se tratava apenas de delírio persecutório. A polícia política atuava de uma forma repressiva alargando os seus tentáculos a uma série de estruturas e colaboradores que contaminavam todo o tecido social.
Recordo o receio das escutas no Café Mandarim, local de reuniões estudantis onde comentávamos as últimas notícias e conspirávamos acerca das mudanças políticas.
Aí também víamos PIDE’s por todo o lado sempre que um “figurino” com gabardina e óculos escuros surgia na clientela não habitual do Café. Lembro-me de uma vez, quando preparávamos uma ação cultural qualquer, o Mourão me chamar à casa de banho pondo o autoclismo a funcionar para abafar a mensagem que tinha para me transmitir.
Além dos cafés é importante assinalar o convívio cultural que pouco a pouco se ia criando em Coimbra. O papel do teatro Académico de Coimbra (CITAC), o Cineclube e a Via Latina constituíam polos agregadores da identidade estudantil progressista.
Também queria referir o papel das repúblicas, em particular algumas repúblicas de estudantes em que participei e que eram locais vivos de reuniões e debates. Na república dos milionários, em Coimbra, onde viviam o Zé dos Calos, o Jorge Pires, o Beto Traça, o Balonas e o Fausto, discutíamos problemas da guerra colonial.
Recordo ainda que foi numa república que preparámos uma manifestação de estudantes a realizar aquando da inauguração da nova Biblioteca Universitária de Coimbra, com a presença de Ministros. O Hélder Costa, o pintor Mário Silva, o Alá, o José Monteiro, a Judite Cortesão e o Francisco Delgado, eram alguns dos animadores empenhados nesta ação.
Era ainda numa espécie de pequena república em formação que eu abancava, quando vinha de Lisboa, “O Antro dos Aracnídeos”. Aí nos reuníamos e “conspirávamos”, num grupo em que estavam presentes o Cabral Pinto, o Jaime Bastos, os irmãos Aidos, o António Bica e outros colegas e camaradas de então.
Saliento ainda que durante uma das “latadas” da queima das fitas, se deu início a algumas práticas de provocação política com humor. À frente do cortejo vinha uma faixa com a inscrição “Angola É Nossa”. Essa faixa era sustentada por colegas negros entre os quais se encontrava o Chipenda, futuro dirigente do MPLA.
As Juntas Patrióticas eram pequenos grupos políticos conspirativos ligados ao partido Comunista e aí participei juntamente com o Leston Bandeira, Paisana, Bandarra, Noronha e outros mais. Mas os amigos mais chegados eram o Fernando Cabral Pinto, o Manuel Matos e o Martins Rego que tinham sido meus colegas no Colégio João de Deus.
Com o Cabral Pinto discutíamos o personalismo de Mounier e o marxismo. Nos cafés e nas tertúlias as discussões eram intermináveis, alargando-se à Helena, à Adília, à Natércia, ao João Quintela, ao Francisco Delgado e a outros colegas e amigos.
Recordo ainda a troca de livros clandestinos e panfletos políticos com o Noronha, o Alá, a Margarida Losa, etc.
Estas discussões tinham muito a ver com as ideias vindas de França, do sindicalismo estudantil, da luta pelo ensino universal e gratuito, pelas bolsas de estudo e residências para estudantes.
A luta pela emancipação em relação à família era um dos fatores importantes, pois este conflito intergeracional exprimia o modo de recusa à sociedade conservadora e aos valores retrógrados da geração anterior. Na verdade, eu sentia isto na pele na medida em que era um privilegiado filho da burguesia, mantendo uma difícil relação paternal que me levaria em busca de um emprego enquanto estudante universitário, ao ir para Lisboa.
Vivo os anos de 61/62 em Lisboa. Estou inscrito na Faculdade de Letras, continuando o curso de Filosofia. Mas o meu contacto com Coimbra é, pelo menos, quinzenal. Esta alternância espacial, só permitida pela oportunidade das boleias que a capa e batina proporcionavam nessa época, deu-me uma maior capacidade de conhecer as duas academias. Assim, pude constatar que a população estudantil de Coimbra tinha uma identidade mais coesa. A direção académica de Coimbra proporcionava uma aglutinação de vontades participada e democrática. Foi esse o papel essencial do José Augusto Rocha. Com efeito, este notável dirigente académico permitiu uma plataforma de entendimento permanente no seio da Academia de Coimbra. Lisboa, muito mais fragmentada em grupos disseminados de estudantes, não tinha a força estruturante e a coesão de Coimbra. As distâncias, a demografia, a “guetização” da cidade universitária e a ausência de residências universitárias como as repúblicas de Coimbra, constituíam um elemento distintivo em relação a Coimbra.
Este meu vaivém entre Coimbra e Lisboa, foi essencial para o estabelecimento de uma vasta rede de amigos nas duas cidades universitárias.
A 24 de Março de 1962, Dia do Estudante, as inquietações das academias universitárias geraram uma profunda solidariedade dos estudantes face à proibição da comemoração desse dia. Dezenas de estudantes foram de comboio em direção a Lisboa para apoiar a manifestação. Mas a polícia parou o comboio e fomos todos recambiados em carrinhas, para Coimbra, como descrevi no testemunho da Crise de 62. 
Em Lisboa relacionei-me com o Jorge Almeida Fernandes, com o João Medina, com o Martins Rego e novamente com o Adelino Torres, velhos companheiros e amigos de longa data. Lateralmente encontrei-me várias vezes com o Medeiros Ferreira, Sottomayor Cardia e Vasco Pulido Valente.
Com este último, vou ter encontros na Casa de Estudantes do Império. Aí conhecerei o Ervedosa e em 63 o Adolfo Maria e o Sócrates Dáskalos, na comum preocupação da luta anti-colonial.
Lembro assim que na luta da Academia de Lisboa, as minhas atribulações pelo associativismo de base levam-me a participar na ocupação da cantina e seguidamente a iniciar a greve de fome que, em algumas linhas, já descrevi no meu testemunho e na pequena homenagem que escrevi, aquando da morte do Francisco Delgado, para o blogue da crise de 62 que se encontra na internet.
Nestes dois textos descrevo um pouco o ambiente da greve da fome na cantina de Lisboa, a ocupação do palácio dos Grilos e o tempo passado na cadeia quando fomos presos pela PIDE, em Caxias.
Reforço aqui algumas vivências durante a prisão, como a extraordinária solidariedade dos estudantes e ainda a forma particularmente interessante como nos conseguimos organizar, criando ministérios funcionais que respondiam às necessidades básicas e culturais, dentro da cadeia. A discussão e a formação estavam continuamente presentes.
Esta primeira experiência prisional em Caxias, permitiu-me perceber o mundo carceral dos presos políticos em Portugal. Lembro-me de, entre as grades, comunicarmos com militantes políticos presos, que não conhecíamos. Recordo, sensibilizado, o coro de canções revolucionárias que fazíamos ecoar por todas as celas. E quando o diretor da cadeia nos veio repreender, ripostamos com a reivindicação de um “habeas corpus”.
Ao ler mais tarde, os livros “Memórias do Cárcere” de Graciliano Ramos e “Os caminhos da Liberdade” de Jean-Paul Sartre, pude recordar aquele tempo de aprendizagem que fiz e que me veio a ser útil numa futura prisão já em 63, na tropa, antes de partir para o exílio.

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HOMENAGEM AO XICO DELGADO

Naquele tempo, em Março de 1962, a Academia de Coimbra andava agitada. Desci até ao café Mandarim. Estava por lá o Jacinto Aidos. Fomos até à Praça da República.
O Aidos estava ao meu lado. Tinha aquele ar de campónio, simples mas destemido. No jardim da Sereia, repleto de estudantes o comício aquecera. Era um veemente repúdio à injustiça de nos terem fechado a Associação. O Aidos estava perplexo. Parece que o estou a ver com aquele olhar rural pousado na folhagem das árvores a perscrutar o ninho dalgum melro. Mas nós ouvíamos tudo. Ouvíamos e sentíamos o despotismo da ditadura e o clima cinzento daquele tempo de iniquidade e repressão. Uma aragem de vento varreu a atmosfera de chumbo do jardim até à Avenida.
Bruscamente fez-se um silêncio. Surgiu então, da maralha, o Francisco Delgado com uma voz forte e tonitroante:
“Vamos todos ao assalto à bastilha… Vamos todos à Associação Académica!
 Era uma voz pesada e metálica. Tinha uma força vinda de dentro como a dum vulcão.
“Botamo-nos” todos a correr mobilizados pela palavra de ordem do Xico.
Chegamos num tiro ao portal trancado pela Pide. Eu, aos empurrões seletivos à zona da fechadura e o Aidos, com aquele corpanzil de touro, arremetíamos contra o madeirame do portão. Duas ou três tentativas depois atiramos de pantanas com a porta. Entramos triunfalmente. Éramos os primeiros a pisar aquele solo proibido!

Jacinto Rodrigues

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