RETALHOS AUTOBIOGRÁFICOS

1º Decénio

[...]Nasci no bairro dos coqueiros numa casa grande com um quintal. Lembro-me do quintal com mamoeiros e uma mandioqueira que me parecia uma árvore grande. No quintal havia ainda um caramanchão; Uma enorme trepadeira de esponjas cobria o muro e o telhado da casa. Recordo ainda as buganvílias vermelhas florindo por entre as paredes do casario.
A casa tinha um quarto de banho com um chuveiro alto onde eu me refrescava quando vínhamos da praia. Numa sala havia uma divisória em madeira pintada de verde. Era a casa das malas.



























[...] Aos 4 anos viemos passar férias a Portugal. Até 1945 vivi em Alfândega da Fé e em Lisboa. Vivia-se a atmosfera da 2ª guerra mundial, embora Portugal não participasse militarmente. Sentia-se o clima de racionamento dos bens alimentares e particularmente em Lisboa, lembro-me de papéis afixados nos vidros das casas e de dirigíveis em cima do Parque Eduardo VII para  impedirem eventuais ataques aéreos a Lisboa.


































Em 1945 toda a família voltou para Luanda, no vapor Quanza. Ainda não havia porto de mar. Os barcos ficavam ao largo e o transbordo fazia-se nos "gasolinas" até às porta do mar. 
Entrei para a escola primária - escola familiar em frente do Palácio do Comércio de Luanda. A diretora da escola era a D. Gandra.



Naquele bairro dos Coqueiros, junto da avenida Salvador Correia, perto das Portas do Mar, do Baleizão, a loja que vendia gelados à entrada da ponte que dava para a ilha, era um bairro central de Luanda. Ali estava a Livraria Lello, o café Gelo, a cervejaria Biker e o Hotel de Paris. O mundo, o meu mundo, era pouco mais do que isso. Era a minha casa, o quintal e a janela com vistas para a fortaleza. A rua que me levava à Avenida Salvador Correia, depois à sede do Sporting e à Padaria dos Coqueiros que fabricava bolachas de água e sal – Capitão. Do lado direito da minha casa ficava o Hotel Luanda e nas traseiras do quintal, continuando o beco dos Mercadores chegava-se à Sé de Luanda. Esse foi o meu pequeno mundo da minha infância.




Na Livraria Lello desfolhava tranquilamente livros da coleção Majora, a História da Quadrilha, como a do Olho Vivo. Sob o olhar benevolente de um primo que ali trabalhava, O Zé Manuel Leitão, reli livros ilustrados como as Aventuras do Barão de Munchausen e, quando havia alguns angolares, ia provar os sorvetes maravilhosos, de chocolate e baunilha, ao Baleizão. E quando me atrevia, com outros miúdos, íamos mesmo até à ilha, à praia, junto do palmeiral e das casuarinas que sombreavam a areia escaldante. Essa ilha, onde muitas vezes íamos ao domingo, com a família, na carrinha Chevrolet de caixa aberta onde ficávamos sentados muito agarrados por causa das curvas, era o local para onde levávamos uma grande panela embrulhada num cobertor com uma magnífica caldeirada de cabrito.


Aquela Luanda dos coqueiros era uma cidadezinha de contrastes. Nos musseques e na ilha do Cabo vivia a população negra. Eram as lavadeiras, os criados e empregados que aí viviam. Vinham trabalhar para o centro da cidade, carregando o fardo mais pesado das tarefas. Às vezes, a população dos musseques vinha de camião até à entrada da cidade. No centro, a velha cidade de Luanda parecia uma pequena cidade que se confundiria com qualquer cidade pequena da “metrópole”. Quase em frente da nossa casa estava a casa do Sr. Merino e da D. Miquelina que tratávamos por avó. A avó Miquelina era negra e dava-nos biscoitos. O avô Merino tocava piano em nossa casa, que o meu pai alugara para as aulas da minha irmã Irene. O seu professor era o Pagé Rosé, italiano de nariz adunco e face vermelhusca. O avô Merino era de boas famílias. Pertencia à casa Diogo & Cª mas agora estabelecera-se por conta própria e tinha uma pequena oficina de reparação de pneus. Eu e o meu irmão gostávamos muito deles. Teria eu uns 7 anos e aprendi a tocar uma musiquinha que ele me ensinou e nunca mais esqueci.


[...]Segundo, a mudança para a escola da Dona Amália, a poesia das Portas do Mar, do baleizão e da ilha, o caramanchão do quintal, o hotel Luanda e o Armandinho que me deu um soco no nariz. O Galo Alves, um jovem desportista daquela altura passara-lhe umas luvas de boxe e o Armandinho amassou-me a “penca” com uma pantufada da luva…
Foram momentos de alegria mas também com traumas.
A morte do Gonzaga, afogado ao pé dos batelões, foi um momento forte. O Gonzaga era um amigo mestiço que me acompanhava pelo bairro dos Coqueiros com um arco e um freio de arame. Um dia, soube pela minha mãe que ele não voltaria a brincar comigo porque tinha morrido. 
[...]Nova mudança de casa e de escola. Fomos para a casa nova do bairro operário e frequentei até 1948-1949 a escola Nº 8, Emílio Monteverde. O Cardoso era o nosso Professor. A Escola ficava ao pé do cemitério velho. Umas vezes íamos pela rua António Enes onde, passando em frente do cemitério e de uma casa de saúde, chegávamos à nossa casa, a Padaria Bailundo. Outras vezes, vínhamos pelo bairro da Brincon, metendo por ruas de terra batida, apanhando maçãs da Índia nos quintais das casas. E quando não havia aulas ou tínhamos intervalos maiores, descíamos às Barrocas, entre os medos e os perigos da falésia e a aventura fascinante que contávamos uns aos outros.
Por altura das eleições de Norton de Matos, em 1948, o meu pai recebia visitas do Capitão Mago Romão que vinha fazer campanha junto dos comerciantes a favor do governo. 
Lembro-me de certo dia, durante a campanha, ao lusco-fusco do entardecer, juntamente com outros jovens mais velhos e dirigidos pelo Potita, filho dum operário ferroviário que morava no nosso bairro, atirarmos com torrões à fotografia do Carmona num cartaz colado na parede da nossa casa. 
O meu pai tinha agora, para além duma serração no quilómetro 14, periferia de Luanda, uma fazenda de café no Quanza Norte, a fazenda Bango e Cariavo, junto do caminho-de-ferro “Maria Teresa-Barraca”. 




Sensação de mudança de estatuto social da família. Camarote no cinema nacional, compra dum Ford V8 e vinda para Portugal em primeira classe no vapor Império ou no Pátria.


            A empresa do meu pai era gerida pelo meu primo, o poeta António Jacinto.


Relembro a vivência no bairro operário com os meus amigos, meninos do Musseque e com os meus colegas da escola. 
Embora a casa onde vivíamos fosse um grande edifício, tínhamos deixado o centro da cidade e deslocamo-nos para a periferia onde estavam os musseques. Assim, o estatuto de maior prosperidade económica da família inseria-se num contexto social mais desfavorecido. Na Escola eram poucos os alunos brancos.
O professor Cardoso tinha um filho mestiço que era nosso colega. 
Tornei-me amigo de um jovem, o Cerqueira, e do Mário Guerra que veio a ser o escritor Benúdia. Encantava-me ver os desenhos que ele fazia.
O mundo mudara nesse novo espaço social. O musseque era ali nas traseiras da casa. Nasciam da terra batida Cajueiros e Gajageiras. Nós íamos muitas vezes brincar nas barrocas ao pé da Marconi que tinha enormes antenas erguendo-se no céu. E nesse céu lançávamos papagaios de papel que os meninos do musseque sabiam fazer com papel de seda e fio de corda. Também, com cola de caçoneira, fazíamos carros de cartão que trazíamos puxados por fios sobre a terra vermelha do musseque. A caçoneira servia também como visco para caçar pássaros. 
Lembro-me de lindíssimos “cardeais” avermelhados que pousavam nas árvores do musseque.


























Entre 1949 e 1950 fico em Alfandega da Fé a refazer a admissão ao liceu na escola da tia Maria do Carmo. Quando os meus pais aí me deixaram foi uma choradeira dos diabos. Foi uma lancinante separação que, creio bem, me deixou a fazer xixi nos lençóis até chegar de novo a minha mãe, no fim do ano letivo. Fiz o exame de admissão ao Liceu em Bragança.




2º Decénio

     Em 1950 viemos para o Porto, para a rua António Granjo e vim frequentar o Liceu. Foi uma mudança séria. O liceu, as aulas, os colegas…
Estes dez anos vão-se distender a toda a minha formação do ensino secundário no Liceu Alexandre Herculano, no Colégio João de Deus e o ano de explicações com o Dr. Monteverde que me habilitou a fazer o exame do sétimo ano no Liceu Salvador Correia em Luanda.  

Este período vai ser importante. As eleições para a Presidência da República e a canditatura de Humberto Delgado vão gerar uma politização crescente e uma intervenção cívica que muito contribuiu para a modernização de Portugal e a progressiva mudança cultural nas mentalidades.




À curta estadia em Alfândega da Fé vai suceder-se um período no Porto de cerca de 8 anos. Na primeira temporada a família habitava a rua Dr. António Granjo. Foi um período cinzento.
A rua António Granjo era ao lado do liceu numa perpendicular à Avenida Camilo. Ao fundo da rua, junto da rua do Heroísmo ficava o quartel da PIDE como vim a saber mais tarde.

Ao cimo, junto da Avenida Camilo, havia uma fábrica. Chamavam-lhe ”A calandra”. Lembra-me de uma constante nuvem de vapor cinzento que a alta chaminé vomitava. Nas manhãs de nevoeiro era um cheiro nauseabundo. Aquilo tornava os dias mais tristes e pesarosos.
Eu tinha um estranho culto para lutar contra esta morbidez de vida de pré adolescente. Tinha um refúgio mistico que me levava a interessar-me por cristais que guardava secreta e devotamente numa caixinha de lata. Outras vezes, para meu contentamento, lia o Mosquito e o Cavaleiro Andante.

Ganhei horror à Mocidade Portuguesa. Havia um miúdo armado em chefe de quinas que à laia de persecutor andava atrás de nós para nos pregar com uma falta de castigo.
Quando li o romance de Hermann Hesse, Damien, vi-me ao espelho no personagem perseguido pelo adolescente sádico cujo entretimento era atormentar e aterrorizar com a prepotência.
 Nos intervalos dos recreios o nosso entretimento eram o pião e os berlindes. Fazíamos entrar nos buracos que escavávamos com as mãos, rolamentos esféricos de metal, mais duradouros e baratos que os vistosos berlindes dalgum incauto e ingénuo principiante deste jogo.
Em casa obrigavam-me a estudar. Cheguei mesmo a ter uma explicadora mas não adiantei muito.
Como a minha irmã aprendia a tocar piano na vizinha, D. Conceição Oliveira, que tinha uma espécie de escola de música, chegando mesmo a dar uns saraus de tempos a tempos, fizeram-me também aprender a tocar violino com o marido, o Dr. António de Oliveira. Foi uma seca que me levou a desistir.


Da esquerda para a direita: O meu irmão Zé, a minha irmã Irene e eu
O raio do homem, que era professor de Física no Liceu punha-me a solfejar em frente de um metrónomo. E troçava sobre a minha inépcia da mão esquerda, pequena e com falta de motricidade fina que mal contornava o braço do violino.

Laboratório de Física-Química LiceuAlexandre Herculano
Contudo, lembro-me de alguns acontecimentos no Liceu que me marcaram profundamente.

Anfiteatro de Física-Química Liceu Alexandre Herculano
Um dia, talvez numa aula do Farinha, ou do Valentim ou do Amado, fomos chamados ao grande anfiteatro. Era o fim da manhã, talvez 11h ou 11h30. Havia naquela turba de miudagem qualquer coisa como um pânico de uma notícia especial que nos queriam dar. Eu entrei no anfiteatro atemorizado. De repente, estávamos quietos sob o olhar de vários professores e funcionários quando apareceu a figura lúgubre daquele nosso reitor, o Sena Esteves.
Chamou ao palco, onde ele se encontrava, um puto da nossa idade. Não sei de que ano seria nem quem era… O miúdo subiu até ao estrado, lentamente. Arrastava-se pesarosamente e um pouco corcovado. Era como se esperasse qualquer coisa de grave.
Eu, na minha cadeira, não pressentia ainda o que se iria revelar. Sentia sim, um silêncio terrível de cortar a aragem daquela manhã friorenta. Do que me lembro foi de um berreiro histérico daquele homem que, no meio do palco e aos altos berros, desatou à bofetada e aos pontapés à pobre criança. Minutos depois de um sermão “mal amanhado”, o reitor justificava o seu ódio profundo diante duma simples malandrice daquele miúdo batido e humilhado. Queria dar um castigo exemplar para que todos aprendessem a disciplina daquele Liceu. Saímos... Saímos em silêncio.
Com o Nicolau Abílio Brandão, que também foi meu colega nessa altura, conversei sobre os nossos professores Olívio, Amado, Valentim, Farinha, Balacó, etc.
No entanto, ainda me lembro também de brincadeiras solidárias e amigas que se pautavam por alguma insubmissa e aventurosa experiência de adolescente nesse Liceu Alexandre Herculano. Percorríamos subterraneamente, como se fossem túneis misteriosos duma fortaleza secreta, os túneis escoadouros da água pluvial daquele liceu decalcado dum liceu nazi. Nessa clandestina intromissão pelos esconsos lugares daquela espécie de bunker, fiz a experiência de enfrentar a disciplina horrorosa daquela instituição. E assim,por essas e por outras, chumbei no 2º ano.
Liceu Alexandre Herculano

Parti então para um Colégio de Padres onde a disciplina continuaria mas onde também fui crescendo em contestação mas já com mais consciência e experiência.
Do Liceu guardei, ao longo de vários anos até hoje, uma amizade que se prolongou em França, onde estive exilado com o médico Abílio Brandão.

  










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